A Comissão da Verdade em Niterói (CVN) foi criada por iniciativa do vereador Leonardo Giordano (PT), através da lei 3027, de 12 de abril de 2013, e instalada oficialmente em 17 de julho do mesmo ano. Embora a intervenção da bancada do PSOL tenha conseguido suprimir alguns pontos negativos previstos no projeto de lei original (como, por exemplo, o que autorizava a doação, por parte de empresas privadas, de recursos de qualquer espécie aos comissionados, ou o que estabelecia que o período a ser investigado fosse de 1946 a 1988), permaneceram diversos artigos que, no entendimento do Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura, não contribuem para a garantia e a promoção dos direitos à memória e à verdade, como será visto a seguir.
Mesmo tendo sido suprimido o trecho do artigo 6º que proibia de modo expresso o envio, por parte da Comissão, de suas conclusões às autoridades competentes, permaneceu no artigo 3º a menção à Lei 6683/79 (Lei de Anistia) como uma legislação que deve ser especialmente observada e respeitada. Ademais, no artigo 5º, IV, é dito que a Comissão deve “colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições Legais”. Por “disposições legais”, entenda-se a Lei de Anistia. Deste modo, fica evidente a intenção de que a CVN não envie à justiça as informações que porventura descubra.
É trágico que uma Comissão da Verdade aceite respeitar uma lei de auto-anistia, criada pelos militares para que eles próprios não fossem responsabilizados pelas violações de direitos humanos que perpetraram, e que é condenada por diversos organismos, como a Organização das Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (que, através da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sentenciou que o Brasil deveria revisar a Lei de Anistia no sentido de impedir que torturadores fossem por ela comtemplados) e por diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de São José da Costa Rica e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos.
A composição da CVN, definida no artigo 4º da lei, cremos, apresenta também problemas importantes. Dos sete membros do coletivo, apenas dois (o advogado Fernando Dias, representando a OAB-Niterói, e o jornalista Jourdan Amóra, como “representante da sociedade civil”) são ex-presos políticos, o que demonstra o pouco espaço reservado aos movimentos de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos políticos, bem como aos movimentos sociais e de direitos humanos. Frise-se, ainda, que a escolha do “representante da sociedade civil” não se deu de modo claro, sendo que não há qualquer tipo de informação acerca do processo de seleção que culminou na indicação de Jourdan Amóra.
No artigo 6º, §1º, é dito que “os dados, os documentos e as informações sigilosas fornecidas à Comissão não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”. As Comissões da Verdade, e não apenas a de Niterói, deveriam ter a obrigação de tornar público todo e qualquer documento ou informação que diga respeito a torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos perpetradas por agentes do Estado durante a ditadura, mesmo que eles ainda estejam classificados pelas autoridades que os mantém como “sigilosos”. A presença deste parágrafo é, portanto, uma clara afronta ao que deveria ser o espírito das Comissões que se pretendem da Verdade.
O artigo 7º, por sua vez, deixa a critério dos membros da Comissão a decisão sobre quais atividades e reuniões serão públicas e quais serão sigilosas. Ora, trata-se aqui de mais um dispositivo que vai contra o próprio espírito das Comissões da Verdade. A única possibilidade de reunião/atividade sigilosa que deveria ser autorizada é aquela em que o depoimento é feito de forma voluntária, e mesmo assim tão somente quando for desejo do depoente. Entretanto, quando o depoimento é feito a partir de uma convocação, entendemos que não deve haver a possibilidade de sigilo nas reuniões, na medida em que está inserido no direito à memória e à verdade o acompanhamento, por parte da população, dos depoimentos e testemunhos.
Uma vez tratadas as limitações estruturais da CVN, passemos a discorrer acerca das limitações que, desde a instalação da Comissão, vêm prejudicando o seu funcionamento. A primeira atividade promovida pelo coletivo, de instalação e posse dos comissionados, ocorreu em 17 de julho de 2013, e contou também com depoimentos de ex-resistentes. A partir daí, observamos um lapso de informações acerca do funcionamento da Comissão até o mês de setembro, quando, no dia 25, foi realizada no Sindicato dos Operários Navais uma atividade conjunta da Comissão municipal com a estadual. Na ocasião, ocorreu uma edição do “Testemunho da Verdade”, projeto do coletivo estadual.
Segue-se a isso mais um lapso de informações acerca da Comissão, desta vez até 07 de novembro, quando foi criada a página institucional da CVN no Facebook, que passa a ser o principal (e único) meio de divulgação das atividades da Comissão, que não possui website ou boletim informativo. É divulgada, na ocasião, uma mesa de debates promovida pelo DCE da UFF, com a presença da CVN. A partir daí, são feitas postagens genéricas, majoritariamente replicadas de outras páginas que não a da Comissão municipal. O debate do DCE é divulgado em três ocasiões, nos dias 11 e 19 (duas vezes nesse dia). Uma última postagem é feita sobre o debate no dia 27, após a sua realização. A partir daí, seguiram-se mais uma série de postagens replicadas de outras páginas, como as da Comissão nacional e da estadual.
Só voltamos a ter notícias da Comissão municipal no dia 16 de janeiro de 2014, quando é postada uma reportagem do jornal A Tribuna na qual é dito que a Comissão, após sete meses de funcionamento, finalmente ganhará uma sede própria. No corpo da reportagem também se comenta que dali a quatro dias (em 20/01) ocorrerá mais uma atividade pública da Comissão. Temos então mais uma publicação no dia 20, feita para divulgar a atividade que estava acontecendo naquele momento, e uma nova dois dias depois, que se trata de uma reportagem acerca do depoimento do dia 20, e que comenta novamente sobre a nova sede da CVN. De 07 de novembro de 2013 a 10 de março de 2014 foram feitas apenas 21 postagens na página oficial da Comissão da Verdade em Niterói (um índice de 0,16 postagens por dia), entre informações replicadas de outras páginas, atualizações das informações institucionais da Comissão municipal, matérias sobre atividades anteriores e a divulgação prévia de apenas uma atividade promovida pela Comissão, e mesmo assim de forma extremamente precária.
Em ofício enviado à CVN em 13 de novembro, o vereador Henrique Vieira (PSOL) solicitou informações precisas acerca do funcionamento da mesma. A resposta, assinada pelo presidente da Comissão, Sr. Fernando Dias, chegou após quase três meses de espera, e foi deveras insatisfatória: refere-se apenas a “várias reuniões em locais diversos”, não informando com exatidão o número das atividades realizadas até o momento, nem a periodicidade das reuniões ordinárias, e nem os locais onde elas se deram. Uma simples busca na internet e na página oficial da CVN no Facebook contradiz a afirmação do Sr. Fernando Dias, de que “os eventos programados são divulgados por antecipação e publicitados na mídia oficial e nas mídias sociais”.
Por fim, mas não menos importante, é preciso lembrar que, segundo informações postadas na página oficial da CVN no Facebook, o relatório parcial de atividades foi lançado em 24 de janeiro de 2014, tendo sido entregue, conforme informa a página, somente à Comissão Estadual da Verdade. Nesse sentido, é preocupante e lamentável que não tenha havido uma ampla divulgação do referido relatório, seja através da mídia oficial ou da internet, o que agride o direito à Memória e à Verdade.
A total falta de informação acerca das reuniões ordinárias (que deveriam ser) periódicas da CVN, bem como a quase total falta de divulgação das (poucas) atividades e atos públicos por ela realizados são um claro desrespeito da legislação que a instituiu. Afinal a lei, mesmo que limitada, determina a publicidade de todas as atividades da Comissão, tendo o sigilo um caráter eminentemente excepcional. Para além disso, a falta de informações se inscreve no rol de violações do próprio direito à memória e à verdade que a CVN deveria não apenas garantir mas também promover.
Tendo em vista o que foi explicitado acima, consideramos que a Comissão da Verdade em Niterói, que já nasceu com limitações estruturais, mergulha de modo cada vez mais profundo em uma lógica que não contribui e jamais contribuirá para a efetivação dos direitos à memória e à verdade. Tais direitos se asseguram através da realização de reuniões e atividades públicas e amplamente divulgadas, com a participação de movimentos sociais e de direitos humanos, de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos políticos, e não do modo como está sendo feito.
Niterói, 10 de março de 2014
Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura
Mesmo tendo sido suprimido o trecho do artigo 6º que proibia de modo expresso o envio, por parte da Comissão, de suas conclusões às autoridades competentes, permaneceu no artigo 3º a menção à Lei 6683/79 (Lei de Anistia) como uma legislação que deve ser especialmente observada e respeitada. Ademais, no artigo 5º, IV, é dito que a Comissão deve “colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições Legais”. Por “disposições legais”, entenda-se a Lei de Anistia. Deste modo, fica evidente a intenção de que a CVN não envie à justiça as informações que porventura descubra.
É trágico que uma Comissão da Verdade aceite respeitar uma lei de auto-anistia, criada pelos militares para que eles próprios não fossem responsabilizados pelas violações de direitos humanos que perpetraram, e que é condenada por diversos organismos, como a Organização das Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (que, através da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sentenciou que o Brasil deveria revisar a Lei de Anistia no sentido de impedir que torturadores fossem por ela comtemplados) e por diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de São José da Costa Rica e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos.
A composição da CVN, definida no artigo 4º da lei, cremos, apresenta também problemas importantes. Dos sete membros do coletivo, apenas dois (o advogado Fernando Dias, representando a OAB-Niterói, e o jornalista Jourdan Amóra, como “representante da sociedade civil”) são ex-presos políticos, o que demonstra o pouco espaço reservado aos movimentos de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos políticos, bem como aos movimentos sociais e de direitos humanos. Frise-se, ainda, que a escolha do “representante da sociedade civil” não se deu de modo claro, sendo que não há qualquer tipo de informação acerca do processo de seleção que culminou na indicação de Jourdan Amóra.
No artigo 6º, §1º, é dito que “os dados, os documentos e as informações sigilosas fornecidas à Comissão não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”. As Comissões da Verdade, e não apenas a de Niterói, deveriam ter a obrigação de tornar público todo e qualquer documento ou informação que diga respeito a torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos perpetradas por agentes do Estado durante a ditadura, mesmo que eles ainda estejam classificados pelas autoridades que os mantém como “sigilosos”. A presença deste parágrafo é, portanto, uma clara afronta ao que deveria ser o espírito das Comissões que se pretendem da Verdade.
O artigo 7º, por sua vez, deixa a critério dos membros da Comissão a decisão sobre quais atividades e reuniões serão públicas e quais serão sigilosas. Ora, trata-se aqui de mais um dispositivo que vai contra o próprio espírito das Comissões da Verdade. A única possibilidade de reunião/atividade sigilosa que deveria ser autorizada é aquela em que o depoimento é feito de forma voluntária, e mesmo assim tão somente quando for desejo do depoente. Entretanto, quando o depoimento é feito a partir de uma convocação, entendemos que não deve haver a possibilidade de sigilo nas reuniões, na medida em que está inserido no direito à memória e à verdade o acompanhamento, por parte da população, dos depoimentos e testemunhos.
Uma vez tratadas as limitações estruturais da CVN, passemos a discorrer acerca das limitações que, desde a instalação da Comissão, vêm prejudicando o seu funcionamento. A primeira atividade promovida pelo coletivo, de instalação e posse dos comissionados, ocorreu em 17 de julho de 2013, e contou também com depoimentos de ex-resistentes. A partir daí, observamos um lapso de informações acerca do funcionamento da Comissão até o mês de setembro, quando, no dia 25, foi realizada no Sindicato dos Operários Navais uma atividade conjunta da Comissão municipal com a estadual. Na ocasião, ocorreu uma edição do “Testemunho da Verdade”, projeto do coletivo estadual.
Segue-se a isso mais um lapso de informações acerca da Comissão, desta vez até 07 de novembro, quando foi criada a página institucional da CVN no Facebook, que passa a ser o principal (e único) meio de divulgação das atividades da Comissão, que não possui website ou boletim informativo. É divulgada, na ocasião, uma mesa de debates promovida pelo DCE da UFF, com a presença da CVN. A partir daí, são feitas postagens genéricas, majoritariamente replicadas de outras páginas que não a da Comissão municipal. O debate do DCE é divulgado em três ocasiões, nos dias 11 e 19 (duas vezes nesse dia). Uma última postagem é feita sobre o debate no dia 27, após a sua realização. A partir daí, seguiram-se mais uma série de postagens replicadas de outras páginas, como as da Comissão nacional e da estadual.
Só voltamos a ter notícias da Comissão municipal no dia 16 de janeiro de 2014, quando é postada uma reportagem do jornal A Tribuna na qual é dito que a Comissão, após sete meses de funcionamento, finalmente ganhará uma sede própria. No corpo da reportagem também se comenta que dali a quatro dias (em 20/01) ocorrerá mais uma atividade pública da Comissão. Temos então mais uma publicação no dia 20, feita para divulgar a atividade que estava acontecendo naquele momento, e uma nova dois dias depois, que se trata de uma reportagem acerca do depoimento do dia 20, e que comenta novamente sobre a nova sede da CVN. De 07 de novembro de 2013 a 10 de março de 2014 foram feitas apenas 21 postagens na página oficial da Comissão da Verdade em Niterói (um índice de 0,16 postagens por dia), entre informações replicadas de outras páginas, atualizações das informações institucionais da Comissão municipal, matérias sobre atividades anteriores e a divulgação prévia de apenas uma atividade promovida pela Comissão, e mesmo assim de forma extremamente precária.
Em ofício enviado à CVN em 13 de novembro, o vereador Henrique Vieira (PSOL) solicitou informações precisas acerca do funcionamento da mesma. A resposta, assinada pelo presidente da Comissão, Sr. Fernando Dias, chegou após quase três meses de espera, e foi deveras insatisfatória: refere-se apenas a “várias reuniões em locais diversos”, não informando com exatidão o número das atividades realizadas até o momento, nem a periodicidade das reuniões ordinárias, e nem os locais onde elas se deram. Uma simples busca na internet e na página oficial da CVN no Facebook contradiz a afirmação do Sr. Fernando Dias, de que “os eventos programados são divulgados por antecipação e publicitados na mídia oficial e nas mídias sociais”.
Por fim, mas não menos importante, é preciso lembrar que, segundo informações postadas na página oficial da CVN no Facebook, o relatório parcial de atividades foi lançado em 24 de janeiro de 2014, tendo sido entregue, conforme informa a página, somente à Comissão Estadual da Verdade. Nesse sentido, é preocupante e lamentável que não tenha havido uma ampla divulgação do referido relatório, seja através da mídia oficial ou da internet, o que agride o direito à Memória e à Verdade.
A total falta de informação acerca das reuniões ordinárias (que deveriam ser) periódicas da CVN, bem como a quase total falta de divulgação das (poucas) atividades e atos públicos por ela realizados são um claro desrespeito da legislação que a instituiu. Afinal a lei, mesmo que limitada, determina a publicidade de todas as atividades da Comissão, tendo o sigilo um caráter eminentemente excepcional. Para além disso, a falta de informações se inscreve no rol de violações do próprio direito à memória e à verdade que a CVN deveria não apenas garantir mas também promover.
Tendo em vista o que foi explicitado acima, consideramos que a Comissão da Verdade em Niterói, que já nasceu com limitações estruturais, mergulha de modo cada vez mais profundo em uma lógica que não contribui e jamais contribuirá para a efetivação dos direitos à memória e à verdade. Tais direitos se asseguram através da realização de reuniões e atividades públicas e amplamente divulgadas, com a participação de movimentos sociais e de direitos humanos, de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos políticos, e não do modo como está sendo feito.
Niterói, 10 de março de 2014
Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura
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