quinta-feira, 7 de abril de 2011

NA CONTRAMÃO DA VERDADE

Por Thiago de Souza Melo, no Fazendo Media


O Brasil tem se negado a apurar e a punir os crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar. Foi obrigado, porém, a decretar, em novembro de 2010, a prisão preventiva do ex-agente da ditadura argentina César Alejandro Enciso, acusado pela justiça italiana por crimes contra a humanidade, praticados no período de 1974-1980. Enciso viveu cerca de 20 anos clandestinamente no Rio de Janeiro, com o nome falso Domingo Echebaster, identificando-se como fotógrafo especializado em competições náuticas e, cinicamente, como militante de esquerda que lutou contra a repressão política em seu país. Esse caso flagra o Brasil na contramão de um processo, em andamento em vários países sul-americanos, de investigação e punição dos crimes consumados nas ditaduras militares da região.
Não por acaso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, integrante da Organização dos Estados Americanos, condenou, em dezembro de 2010, o Estado brasileiro pelas torturas e execuções sumárias promovidas pelo regime militar em repressão à guerrilha do Araguaia. O país foi declarado culpado por não investigar, processar e punir os responsáveis pelas torturas, desaparecimentos forçados e mortes de militantes políticos.
A interpretação do STF de que a lei de anistia de 1979 também se estende aos torturadores e assassinos a serviço da ditadura militar foi rechaçada pela Corte com base na Convenção Americana de Direitos Humanos. Pela decisão, cabe agora ao Brasil indenizar os familiares dos mortos e desaparecidos, identificar e entregar os restos mortais aos seus familiares, bem como processar e julgar os agentes públicos responsáveis pelos assassinatos.
Em ação movida para captura internacional e julgamento de 149 repressores de ditaduras da América do Sul — dentre os quais 13 brasileiros, muitos falecidos —, a justiça italiana acusa César Enciso dos crimes de massacre, sequestro e homicídio qualificado contra cidadãos ítalo-argentinos e ítalo-uruguaios. Como nos informa o jornalista uruguaio Roger Rodriguez, o repressor é responsável direto pelas execuções de Rosario Barredo, William Whitelaw, Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz, e pela prisão arbitrária e tortura  de dezenas de ativistas políticos, muitos desaparecidos. Com seu sogro, o general Otto Paladino, esteve à frente do centro de detenção e tortura conhecido como Automotores Orletti, uma loja de carros usada como base de apoio da Operação Condor, localizada na região de Buenos Aires. Trabalhou também na Secretaria de Inteligência do Estado da ditadura argentina.
Hoje, Enciso encontra-se detido no presídio Ary Franco, no Rio. É necessário que organizações de direitos humanos pressionem o governo brasileiro a autorizar a sua extradição para julgamento na Itália, a exemplo das iniciativas já tomadas pelo Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM/RJ). Estamos diante de um caso emblemático para esclarecimento dos crimes cometidos pela aliança político-militar formada pelas ditaduras do Cone Sul, na chamada Operação Condor. A captura de César Enciso ocorre em um contexto no qual países da América do Sul, além da Itália, concentram esforços para elucidar crimes cometidos por regimes autoritários das décadas de 70 e 80.
Há algum avanço no continente em relação ao resgate da memória, da verdade e da justiça dos mortos e desaparecidos políticos. Na Argentina, os ex-generais-presidentes Reynaldo Bignone e Jorge Videla, assim como dezenas de militares, foram condenados à prisão em 2010 pelo assassinato de ativistas de esquerda. Mais recentemente, o ex-general do exército argentino Eduardo Cabanillas, que já cumpria pena de prisão perpétua por abusos cometidos na ditadura, e outros três agentes foram sentenciados pela tortura e homicídio de 65 pessoas presas no Automotores Orletti.  Na América do Sul, foram instaladas comissões da verdade para investigar violações de direitos humanos cometidas nas ditaduras militares do Chile, Uruguai, Argentina, Peru, Equador, Paraguai e Bolívia.
A prisão de César Enciso em território brasileiro nos remete a um triste período da história do Brasil e da América do Sul. A diferença é que nossos vizinhos começam a se conscientizar da necessidade de um encontro com a verdade de sua própria história. Por aqui, nossos condores continuam a voar livremente e ainda classificam sem inibição de “ditabranda” essa página infeliz de nossa história. A Ponte Rio-Niterói, por exemplo, ainda ostenta o nome de Costa e Silva, numa incompreensível homenagem ao ditador.
Que o constrangimento internacional e a luta dos ativistas dos direitos humanos consigam provocar o desarquivamento da proposta de uma Comissão da Verdade para os crimes praticados pela ditadura brasileira é o que se espera. Devemos todos nos sentir convocados pelo apelo do jurista Dalmo Dallari ao exigir o integral e imediato cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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