Por Flavia Piovesan*
A CIDH recomendou a imediata suspensão do processo de licenciamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, até que fossem observadas condições mínimas, como a realização de consulta prévia, livre e informada com as comunidades afetadas. O Estado brasileiro qualificou a decisão da Comissão Interamericana como “precipitada e injustificável”. Em 30 de abril, matéria publicada no jornal “Folha de S.Paulo” ressalta que, em ato de retaliação ao sistema interamericano, entre outras medidas, a presidente Dilma teria retirado, em caráter irrevogável, a candidatura do ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Vanucchi à Comissão Interamericana. (“Dilma retalia OEA por Belo Monte e suspende recursos”, “Folha de S.Paulo”).
A reação do Estado brasileiro assume acentuada gravidade por converter a discordância e a insatisfação com a medida tomada pela Comissão da OEA em inaceitável ataque ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Este sistema salvou e continua salvando muitas vidas, oferecendo uma extraordinária contribuição para a promoção dos direitos humanos, do estado de direito e da democracia em nossa região. Permitiu a desestabilização dos regimes ditatoriais; exigiu justiça e o fim da impunidade nas transições democráticas; e agora demanda o fortalecimento das instituições democráticas com o necessário combate às violações de direitos e proteção aos grupos mais vulneráveis.
Em 24 de março, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, ao votar a favor da designação de um relator especial para investigar denúncias de violações de direitos humanos no Irã (rompendo com uma política internacional de oito anos marcada pela reiterada abstenção), o Brasil sinalizou a sensíveis transformações na política externa brasileira – celebradas pela cúpula da ONU e por ONGs. A embaixadora do Brasil junto à ONU esclareceu: “O voto não é contra o Irã, mas a favor do sistema de direitos humanos da ONU”, acrescentando que o Brasil encorajará a “aplicação dos mesmos padrões a outros possíveis casos de não cooperação com o sistema de direitos humanos da ONU”. A presidente Dilma tem enfatizado o tema dos direitos humanos como foco da política externa brasileira, “a ser promovido e defendido em todas as instâncias internacionais sem concessões, sem discriminações e sem seletividade”.
A preocupante resposta brasileira no caso Belo Monte constitui um retrocesso, culminando em agressiva afronta à tão aclamada cooperação com os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Viola tanto as regras do jogo internacional – aceitas pelo Brasil no exercício pleno de sua soberania – como o dever constitucional de conferir prevalência aos direitos humanos nas relações internacionais (princípio fundamental consagrado no artigo 4º, II da Constituição Federal). O desrespeito aos parâmetros internacionais e constitucionais resulta na ameaça à vida e à integridade de comunidades vulneráveis.
A censurável reação do Brasil mostra-se também incompatível com sua crescente responsabilidade internacional, na qualidade de ator global empenhado no aperfeiçoamento do multilateralismo e na democratização das instâncias decisórias internacionais.
É emergencial resgatar a coerência, a consistência e a integridade da política externa brasileira em matéria de direitos humanos, em defesa das vítimas de graves violações, reconhecendo a importância da cooperação com o sistema interamericano, endossando a credibilidade das organizações internacionais e fortalecendo o multilateralismo para a afirmação do estado de direito internacional.
*FLÁVIA PIOVESAN é professora da PUC-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário