*Por Paula Márian
O domingo amanheceu como qualquer domingo ensolarado de outono. Só não deu para preguiçar muito na cama, ler os jornais sem pressa ou cochilar diante de desenhos animados somente para curtir um momento de aconchego e chamego com a filhota no sofá da sala... Tivemos de sair as duas, por volta das 9h30, a pé pelo nosso bairro, em busca de um apartamento para comprar de preferência por ali mesmo, onde a família tem vivido por quase 40 anos. Para que sair da Ponta D'Areia? Cultivamos forte relação afetiva com o bairro popular de Niterói, de características peculiares, de cidade do interior, embora vizinho do Centro, instalado numa extremidade de terra, encimada por um morro, ocupada principalmente por imigrantes ibéricos, sul-italianos e nordestinos — este o nosso caso, inclusive — à beira da Baía de Guanabara. Quem vive na Ponta D’Areia, bairro de muitas fragrâncias, costuma nutrir tamanho afeto pelo lugar que este supera até mesmo o efeito nauseabundo de alguns típicos fedores.
Há odores dos mais diversos na Ponta D’Areia. Alguns comuns à cidade em geral, como o do cocô de cachorro nas calçadas, do lixo orgânico mal acondicionado e espalhado em montinhos ou até montões por vários cantos de rua, em geral aos pés de determinados postes. Há cheiros peculiares como o da tinta e do óleo dos barcos dos pescadores da beira do cais, de casas velhas de vila, da graxa dos mecânicos das muitas oficinas locais, de peixe frito, das flores de seus muitos belos jardins cultivados. Mas o bairro ainda tem lá fedores graves: por exemplo, da maresia putrefata da Baía de Guanabara; de peixe podre misturado com esgoto.
Depois de visitar um apê candidato à compra, no caminho de volta para casa, passamos pela esquina das ruas Silva Jardim com Visconde de Rio Branco e sentimos a habitual fedentina , o odor típico e histórico concentrado naquele ponto entre o Mercado São Pedro e a Estação de Tratamento de Esgoto Toque-Toque. O primeiro, fonte de catinga antiga. Esta última erguida há apenas dois anos no bairro pela concessionária municipal de poético nome Águas de Niterói.
Quando passamos em frente à Praça Jorge Roberto Silveira, construída logo depois da estação, como contrapartida à introdução no bairro daquela usina de cheiro pútrido, já sentimos o ar menos acre nas narinas. Ali, onde antes existia o campo de várzea mais cobiçado de toda a região, surgiram os imensos tanques de esgoto — com capacidade equivalente a de duas piscinas olímpicas e meia de cocô. E bem rente ao paredão de um dos tanques, abriu-se um campinho de futebol, este anexo à praça propriamente dita, de piso de areia, com pista de skate, churrasqueira, banquinhos, canteiros com plantas verdes, flores e palmeiras, caramanchões e clássicos brinquedos infantis.
Ao passar pela praça, banhada pela outonal luz daquela manhã de domingo, já estava quase em frente de casa. Foi quando flagrei a mim mesma despida de minha renitente implicância original com o logradouro, pela inevitável associação do cheiro de ralo à podridão na política. É que a praça, além da minha ojeriza ao nome, surgiu, antipaticamente, de uma intervenção arbitrária municipal na comunidade desorganizada e sem resistência, por meio de um conluio envolvendo poucos falsos líderes locais e a omissão de muitos, eu inclusive. Perdida nessas reflexões, eu tive de repente de admitir que a obra de paisagismo naquele local progredira acima das minhas expectativas naquele retângulo árido, antes conhecido como areal. Não passava das 11h então. Foi quando eu e minha filha de oito anos vislumbramos a tal praça, como recém-existia, pela última vez.
Chegamos à casa dos meus pais para almoçar. Estávamos no sétimo andar do Edifício Cidade do Porto, apê de frente, quase em frente à praça batizada com o nome do prefeito mais ausente de que Niterói ouviu falar. Almoçávamos em silêncio quando ouvi um estrondo incomum, coisa de segundos. Apareceram garças enlouquecidas no céu estupidamente azul. Corri para a janela. Perdi num piscar de olhos a chance de testemunhar o tsunami de cocô provocado pelo rompimento do paredão do tanque colado ao campinho. Adeus campinho, adeus praça. O que havia era uma enxurrada de pasta de esgoto borbulhante e fétido. O lamaceiro enauseante conquistou rapidamente todas as ruas ao redor. Entrou sem cerimônia quartel da Marinha de Guerra adentro. Invadiu o mercado de peixes misturando os fedores frescos e os podres.
Cena impressionante de destruição... O paredão no chão, um tubulão prateado pendurado, estourado. O líquido asqueroso arrastando com a sua força carros, estes completamente inundados, plantas, destruídas, e a galera do carteado da esquina compôs a lista dos acidentados, os oito feridos pela onda tóxico-orgânica putrefata.
Assim que vi a paisagem mergulhada em pasta fedida, foi mesmo nos coroas do carteado que pensei e também nas crianças habituês da praça. Temi por elas, mas, ufa, todas se salvaram — graças a Deus, ao sol escaldante do meio-dia e à fome que levou essa meninada minutos antes para a mesa do almoço de suas casas. Da pensão da Tia Selma, na esquina bem em frente ao acidente, reinaugurada após uma bela reforma, não sobrou inteira sequer uma das novas mesas rústicas de madeira, estragadas para sempre e consumidas pela lama as toalhas vermelhas, destruídos os vasos com as flores de plástico kitch que as enfeitavam. Lá se foi a pensão da Tia Selma, assim ficou todo quebrado o seu Bira do 801. E o que falar do coro de justas lamentações das amigas cujos carros foram inundados pela maré de cocô? Eis que o quadro foi de trauma coletivo. Putz.
Não que tenha havido por ali alguma tragédia comparável com a que, um ano atrás, ocorreu no Morro do Bumba, a favela da Zona Norte de Niterói, com tantas casas e vidas destruídas. Nosso bairro ficou foi numa merda, só, para todo lado. Merda um bocado simbólica, por sinal. Merda vomitada das entranhas da cidade por sobre filhos seus assim castigados pelo costume inaceitável de conviver tão pacificamente com tantos fedores.
Mas será que, depois de toda essa calamidade olfativa, depois de a gente ter visto nossas ruas mergulhadas em todo o cocô do Centro da cidade, a gente vai se tornar finalmente capaz de sentir o verdadeiro fedor da imunda política municipal? Será que vamos enfim respirar fundo e em uníssono para reagir e lutar por um ar mais respirável, por uma atmosfera menos contaminada pela inércia e a omissão, pela baixa autoestima comunitária? Está na hora de a gente parar de retroalimentar a nossa própria prisão de ventre coletiva e essa constipação nasal que tem nos impedido de lutar contra tantos fedores. Já passa da hora de a gente se livrar de um prefeito do qual nem o nariz consegue ser ao menos solidário. É preciso agir contra essa sujeira toda na política que está por detrás de obras tão frágeis como a Toque-Toque. Temos de cultivar nosso nojo revolucionário antes que os jatos de alta pressão da Águas de Niterói varram de uma vez e pra sempre da nossa memória os efeitos repulsivos do domingo mais nojento que a bucólica, pacata e discreta Ponta D’Areia jamais viveu. Nosso bairro não é latrina!
Paula Máiran — jornalista, moradora da Ponta D’Areia, assessora do deputado estadual Marcelo Freixo, militante do Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura - PSOL/Niterói.