segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Anistia não anistia torturador, afirma Ivan Valente


O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) apresentou voto em separado ao parecer que defendia a rejeição ao Projeto de Lei 573/2011, que exclui da Lei da Anistia (Lei 6683/1979) os crimes cometidos por agentes públicos, militares e civis, entre eles o crime de tortura.

O PL 573 está em debate na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e provocou intenso debate na reunião da manhã desta quarta-feira 24. Muitos parlamentares devem votar a favor do relator Hugo Napoleão (DEM/PI), que defende o arquivamento do projeto. Entretanto, foi aprovado requerimento do deputado Arlindo Chinaglia (PT/SP) pelo adiamento da discussão por cinco sessões.

A Lei da Anistia, de 28 de agosto de 1979, afirma em seu artigo 1º :“É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.

O PL 573/2011, apresentado pela deputada Luiza Erundina (PSB/SP), tira justamente essa amplitude da lei, ao definir que não se incluem entre os crimes conexos os cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos. Em outra palavras, o PL exclui da Lei da Anistia os crimes cometidos durante a ditadura militar, incluindo a tortura, crime considerado inafiançável e insuscetível à anistia, conforme a Constituição Federal.

“A questão é muito polêmica. Os setores conservadores são contra o projeto porque não admitem que os militares e agentes do Estado que torturaram e mataram durante da ditadura sejam punidos. Querem deixar a Lei de Anistia como está. Já nós entendemos que o projeto é fundamental para garantir o direito à memória e a Justiça no país. Estamos fazendo história ao mudar essa lei. O projeto é de interesse público e mexa coma vida de muitos que estiveram na luta contra a ditadura”, argumentou o deputado Ivan Valente.

LEIA ABAIXO o voto em separado do Deputado Federal Ivan Valente.

COMISSÃO DE RELAÇÕES EXTERIORES E DEFESA NACIONAL
PROJETO DE LEI N. 573, DE 2011

Dá interpretação autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.
Autora: Deputada LUIZA ERUNDINA
Relator: Deputado HUGO NAPOLEÃO

VOTO EM SEPARADO DO DEPUTADO IVAN VALENTE

I – RELATÓRIO

Versa o PL 573/2011 sobre interpretação da Lei n. 6.683/1979, que concedeu anistia criminal e disciplinar para atos cometidos durante o regime militar. Pretende o projeto interpretar autenticamente, por meio de lei, a abrangência da expressão “crimes conexos” contida no art. 1º, § 1º da referida lei de anistia, excluindo dessa interpretação “os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos”. O projeto retroage os efeitos da lei à data de publicação da Lei n. 6.683/1979, estipulando que “a prescrição, ou qualquer outra disposição análoga de exclusão da punibilidade, não se aplica aos crimes não incluídos na anistia concedida pela Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979”.

Na Justificativa, a ilustre autora, Deputada Luíza Erundina (PSB/SP), argumenta que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n. 153, de 29 de abril de 2010, não encerrou o debate levantado em torno do âmbito da anistia declarada pela Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Nesse acórdão, o tribunal teria dado à expressão “crimes conexos”, empregada no caput e no § 1º do art. 1º daquele diploma legal, “um sentido claramente oposto ao entendimento técnico tradicional da doutrina e da jurisprudência, tanto no Brasil quanto no estrangeiro”. Esse entendimento violaria o preceito constitucional fundamental do art. 5º, XLIII, assim como o sistema internacional de direitos humanos. Lembra, ainda, que “nenhuma lei anterior à promulgação de uma nova Constituição permanece em vigor quando infrinja algum de seus dispositivos fundamentais”. Em seguida cita trechos de sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, prolatada em 24 de novembro de 2010, cujos “Pontos Resolutivos” e “Reparações” estariam fundamentando a proposição.

Apresentada em 23/2/2011, por despacho de 14/4/2011 foi distribuída à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), sujeita a apreciação do Plenário, em regime de tramitação ordinária. Em 5/5/2011 foi-lhe apensado o PL 1124/2011.

O PL 1124/2011, de autoria do nobre Deputado Chico Alencar (PSOL/RJ), reproduz a mesma ementa e os arts. 1º, com redação semelhante e 2º, com redação idêntica (este, sem o parágrafo único, que na proposição principal, extingue a prescrição). O art. 1º difere no trecho final, uma vez que o projeto principal refere-se a “crimes políticos”, enquanto o apensado utiliza a expressão “atos contra a segurança nacional e a ordem política e social”.

Na Justificativa, o nobre autor utiliza a mesma argumentação vazada na proposição principal, colhendo fundamentação proposta pelo jurista Fábio Konder Comparato, acerca do desrespeito aos direitos humanos, com fulcro no julgamento em andamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que veio a se confirmar com a sentença de 24/11/2010. O ilustre autor atribui ao mencionado jurista a autoria do projeto, reapresentado em razão do arquivamento do PL 7430/2010, da Deputada Luciana Genro (PSOL/RS), arquivado por término de legislatura, o qual fora, ainda, inspirado em projeto similar de 1999, do ex-Deputado Marcos Rolim.

Em 2/5/2011 a proposição foi redistribuída, com inclusão da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN). Nessa Comissão, obteve parecer pela rejeição.

É o relatório.

II – VOTO

Com a devida vênia do digno relator da matéria nesta Comissão, ousamos discordar do seu parecer.
Ora, todos sabem que a tortura, esse expediente medieval para arrancar a verdade a qualquer custo, continua existindo. Nada adiantou a modernização das leis penais, conforme propugnado desde o Marquês de Beccaria, em sua magistral obra “Dos delitos e das penas”, há mais de três séculos.

Na Idade Média, a tortura fazia parte do rito processual, ainda que todas as provas estivessem contra o acusado ou mesmo a seu favor. Era preciso torturá-lo, para que por esse meio houvesse a certeza plena da autoria do delito e, em consequência, o culpado iniciasse a expiação de suas faltas. A supremacia da vontade do poder soberano iria culminar com o espetáculo dantesco de sua morte na fogueira, na roda e em outros artefatos diabólicos a fazê-lo sentir o inferno em vida.

Importada do colonizador, a tortura sempre existiu no Brasil e continua existindo em pleno século XXI. Durante a ditadura militar ela foi simplesmente institucionalizada e praticada generalizadamente pelos órgãos repressores. Assim, os agentes do Estado, militares e policiais, sob a conivência omissa dos seus comandantes, ou cumprindo suas ordens, torturaram milhares de opositores do regime, na tentativa de arrancar-lhes os nomes dos camaradas de ideal. Muitos foram mortos ou estão “desaparecidos”, sem que lhes fosse dada a dignidade de um funeral e a certeza de uma sepultura onde seus familiares pudessem chorar-lhes a ausência.

Muitos eram meramente suspeitos e nem por isso deixaram de ser seviciados, julgados e condenados, às vezes à morte, sem qualquer processo.

Ainda hoje, como relata a revista Caros Amigos, deste mês de agosto, a tortura é uma triste realidade, especialmente nas polícias e presídios do país. Relata a revista, coerentemente, que essa prática é uma herança do regime militar. Maldita herança!

Então de nada adiantou nossa Constituição prescrever, dentre as garantias fundamentais que a tortura é equiparada aos crimes hediondos? Trata-se de um crime imprescritível, embora tal figura não conste de nossa Carta Magna, mas em respeito ao conteúdo humanitário das Convenções Internacionais que assim dispõem.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que os crimes ditatoriais são imprescritíveis. O Chile foi punido pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em virtude de sua opção pela não responsabilização penal dos agentes da ditadura de Augusto Pinochet. Desta forma, o Brasil pode sofrer retaliações se não começar as investigações e punições aos agentes da ditadura brasileira.

O Direito Internacional Público recomenda que haja, em casos como o ocorrido em nosso país, uma Justiça Transicional. Nesses moldes, a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou ao Brasil, em 2005, a adoção desse mecanismo de resgate histórico das lutas pela liberdade e pela democracia, preconizando:

- a revelação da verdade, mediante a abertura de arquivos do período e a criação de comissões da verdade imparciais;

- a responsabilização pessoal dos perpetradores de graves violações de direitos humanos, entendendo que a situação de impunidade é fator de inspiração e dá confiança a quem adota práticas violadoras de direitos;

- a reparação patrimonial dos danos às vítimas, através de indenizações financeiras;

- a reforma institucional dos serviços de segurança, expurgando de seus quadros quem propagava a teoria do período;

- a instituição de espaços de memória, para que as gerações futuras saibam que, no país, se praticou o terror em nome do Estado.

Estar-se-ia atendendo o que dispõe a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, de 26 se novembro de 1968, para a qual, mesmo que o direito interno do país não os tipifique como crime, os atos de tortura são imprescritíveis. É o contrário do que propõem os opositores da alteração da Lei de Anistia, para quem o princípio da anterioridade da lei penal não permite que os torturadores de outrora sejam alcançados. Esse é um dos fundamentos esgrimidos pelo nobre relator, com o qual não podemos concordar.

O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu pela imprescritibilidade dos danos morais advindos de tortura no regime militar (REsp 1.000.009/PE, Rel. Min. Humberto Martins, DJU 21.2.2008). Por que não a responsabilização pelos crimes então cometidos, a título de proteger o Estado, mas em afronta total ao Direito e à Justiça?

Conforme relato contido no documento “Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964”, 
elaborado sob os auspícios do saudoso ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, quatro centenas de brasileiros desapareceram nos porões da ditadura e suas famílias aguardam até hoje que seja feita justiça.

É preciso, pois, resgatar a memória dos brasileiros assassinados ou desaparecidos durante a ditadura militar, dentre os quais, os mais conhecidos, Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Wladimir Herzog, Manoel Fiel Filho, Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), Honestino Monteiro Guimarães, Joaquinzão e outros tantos quase anônimos, incluindo os tombados na Guerrilha do Araguaia.

Em face do exposto exorto meus ilustres Pares pela APROVAÇÃO do Projeto de Lei n. 573/2011, nos termos deste VOTO EM SEPARADO e, portanto, contrário ao Parecer do ilustre Relator.

Sala da Comissão,

Deputado IVAN VALENTE (PSOL-SP)

Um comentário:

  1. Parabéns, Deputada Erundina e Deputado Ivan Valente, pela coragem de trazer à tona discussões desta monta no Congresso para diminuir a violência do Estado no presente! E também ao Núcleo Frei Tito, que acabei de conhecer, pela divulgação das lutas.

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