Por Matheus Rodrigues Gonçalves*
“Quem não se lembra do passado fica condenado a revivê-lo.”
(Eduardo Galeano)
Foi aprovado na Câmara de Deputados o Projeto de Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade. Longe de ser a resposta institucional aos anseios de anos da população, o referido projeto nada mais é que o resultado de pressões dos grupos mais conservadores da sociedade, em especial dos estratos militares. Setores conservadores e militares apoiando e induzindo uma Comissão da Verdade? Explica-se.
Em dezembro de 2009 o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), que previa, dentre outras iniciativas, a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, com o fito de investigar os crimes cometidos pelos agentes do Estado no período da ditadura civil-militar de 1964-85, inclusive com a responsabilização de seus perpetradores. Logo que lançada, a proposta foi muito criticada, tanto pelo espectro mais à direita da sociedade e do Congresso, quanto pelos militares conservadores, que rapidamente ganharam o respaldo de Nelson Jobim, então Ministro da Defesa. Queriam a flexibilização do período e dos sujeitos a serem investigados, bem como a amenização dos termos contidos no projeto, e exigiam que a Comissão não tivesse poderes para responsabilizar os torturadores. Iniciou-se então verdadeiro circo, com a grande mídia sustentando a ideia de que a atitude do governo era meramente “revanchista”.
Houve então a fatídica mutilação do projeto de Comissão. Cedendo a pressões reacionárias, o mesmo governo Lula fez profundas modificações em todo o PNDH-3. No que tange à Comissão da Verdade, promoveu a retirada de expressões como “repressão ditatorial”, “regime de 1964-1985” e “resistência popular à repressão” e as substituiu por um genérico “prática de violações de direitos humanos no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição (1988).” Ademais, passava a permitir a investigação de militantes de esquerda (que, note-se, já haviam sido perseguidos, expatriados, presos, torturados e desaparecidos no regime ditatorial) e retirava toda a possibilidade de os membros da Comissão responsabilizarem os violadores de direitos humanos. A Comissão foi mutilada e esvaziada de sentido.
Neste diapasão, cabe perguntarmo-nos se esta Comissão aprovada na Câmara será de algum modo vantajosa, se trará de fato benefícios para a sociedade. Benefícios na medida em que é imprescindível que os eventos e crimes de lesa-humanidade que ocorreram na ditadura sejam passados a limpo. A titulo de ilustração, vale ressaltar que, de acordo com estudos realizados pela pesquisadora estadunidense Kathryn Sikkink, os países que adotaram Comissões da Verdade eficazes e com poder de responsabilização viram seus índices de violência institucional diminuírem ao longo dos anos, ao contrário do que ocorre no Brasil (vide os 493 assassinatos cometidos pela polícia paulista em uma única semana de 2006, número maior que as vítimas fatais de 21 anos de ditadura civil-militar). Concomitantemente, a investigação das violações de direitos humanos por parte de agentes estatais é necessária para garantir o direito à Memória de que gozam não apenas as famílias das vítimas, mas toda a sociedade. É inconcebível que um país alcance uma plena democracia e respeite em sua totalidade os direitos fundamentais da pessoa humana se não investiga os crimes passados (embora imprescritíveis) e tome medidas concretas para que não se repitam.
Nos moldes em que foi aprovada, a Comissão da Verdade representa um retrocesso na luta pelos direitos humanos no Brasil. Uma comissão que, com sete membros (número deveras diminuto, especialmente se considerarmos que as comissões sul-africana e guatemalteca tiveram cerca de 200 membros cada), sem autonomia orçamentária e transparência, se proponha a investigar um período demasiadamente extenso de tempo, como é o caso (42 anos), já nasce viciada, completamente incapaz de realizar investigações eficazes. Ressalte-se ainda que os sete membros da Comissão serão indicados única e exclusivamente pela presidenta da República, o que pode dificultar a participação de facto da sociedade civil e das organizações de defesa dos direitos humanos. Finalmente, serão nulas as chances de instalação de uma futura Comissão que seja mais legítima, visto que, uma vez concluídos os trabalhos da atual, mesmo que insuficientes, não haverá vontade política para enxergar a necessidade de outra investigação mais profunda. Trata-se, pois, de uma oportunidade única.
Por isso deve-se defender e lutar por uma Comissão da Verdade de verdade, que também seja da Memória e da Justiça, e que seja capaz de averiguar todos os crimes perpetrados por agentes estatais durante a ditadura civil-militar e de proceder com as devidas responsabilizações. Aqueles que não se lembram do passado, certa vez afirmou o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, estão condenados a revivê-lo. Pelo respeito à democracia e aos direitos humanos e contra o retorno de todo e qualquer tipo de Estado de exceção, que seja feita a opção – difícil, sob um primeiro olhar, mas acertada – de rejeitar o projeto que ora está sendo forçado à sociedade brasileira. Que se opte por uma outra Comissão. Que se opte pela Verdade, pela Memória e pela Justiça.
*Matheus Rodrigues Gonçalves é graduando de Direito da UNIRIO e membro do Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura do PSOL/Niterói.
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