O juíz Baltasar Garzón, conhecido mundialmente pela prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, defende, em um artigo publicado neste domingo no jornal espanhol El País, que se mantenham as investigações dos crimes da época da ditadura franquista e a criação de uma Comissão da Verdade para que haja uma indenização histórica das vítimas.
Leia abaixo o artigo publicado pelo magistrado:
As palavras do Supremo Tribunal que, sob a forma de sentença, me "absolveu", após quase dois anos de suspensão do cargo, ainda estão frescas. Esta investigação não pode permanecer enterrada como as mais de 100 mil pessoas desaparecidas nos campos espanhóis, cujos restos lembram a dignidade daqueles que exigem justiça contra a indiferença daqueles que permitem que a justiça continue ausente, assumindo o constrangimento internacional do esquecimento e do silêncio.
Esta sentença, em uma de suas linhas, refere-se às legítimas aspirações das vítimas de saber o que aconteceu, como e por quê, mas considera que a verdade histórica não pertence ao mundo da justiça e, assim, desconhece o direito humano das mesmas à verdade, justiça e indenização. Com esta decisão, na verdade, esses direitos foram encurralados e destruídos, e as vítimas raramente recompensadas.
Os autos do dia 29 de março (ditados pelo magistrado Luciano Varela, entre outros), deram aos juízes a competência para a abertura das covas para a recuperação dos corpos, algo que ficou perfeitamente claro em minha resolução de 26 de dezembro de 2008, que nem sequer foi mencionada. Levando em conta o teor desta resolução ("... na presença de indícios da existência de restos de possíveis vítimas de delitos suscetíveis de localização, possa incitar ao juiz de instrução competente, de acordo com o artigo 14,2 do Código de Processo Penal, a prática de medidas com o objetivo de datar aquelas ações criminais e, se necessário, a identificação das vítimas), não garantem, nem mesmo o mínimo de indenização ao não exigir, como deveriam, a realização desse direito universal e indiscutível das vítimas, limitando-se a citar normas internacionais que, de fato, não se aplicam.
Em todo caso, há outras maneiras de se reconhecer o direito à justiça para as vítimas, como o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Em nenhum caso o esquecimento pode ser o resultado. Não enquanto tenham forças aqueles a quem consideramos um direito a resposta judicial.
Também não devemos esquecer que em nossa Constituição está regulado o direito de iniciativa legislativa no artigo 87, que prevê a possibilidade para os cidadãos de poderem impulsionar a aprovação de leis, como seria a que regulamenta a criação e o desenvolvimento de uma Comissão da Verdade, acima das opiniões dos pregadores da intolerância, e assumindo uma realidade impossível de esconder: a falta de resposta do Estado para o desaparecimento de mais de 150.000 pessoas entre 1936 e 1951, na Espanha, como resultado direto da ditadura franquista.
A Transição não abordou nenhum dos temas relacionados com os crimes franquistas e suas punições, nem se falou de verdade, justiça e indenização. A falsidade em que vivemos à respeito daqueles crimes foi potenciada pela sentença do Supremo Tribunal, que fala da dificuldade de acompanhar os princípios do sistema penal com "a declaração da verdade histórica de um feito tão multifacetado quanto a Guerra Civil e seu subsequente pós-guerra".
Realmente é difícil assumir que a ditadura franquista tenha sido algo diferente de uma simples e dura ditadura, e que a falta de direitos, a perseguição, o assassinato, o desaparecimento, a retirada de menores de suas legítimas famílias e a tortura de milhares de pessoas , seja denominado "fato multifacetado", mas é ainda mais difícil tentar explicá-lo fora da Espanha. Nem mesmo o mais benevolentes entende. Por acaso investigaram os crimes ou houve vontade de investigá-los depois, até a tentativa frustrada do juiz que foi formalmente acusado e julgado por isso? Por acaso fora permitida a investigação que se propunha aos que permanecem vivos? Por acaso o atual governo tem mostrado algum interesse em aplicar até as últimas consequências a atrofiada Lei da Memória Histórica? Por acaso existe alguma justificativa para que se persiga as vítimas por se manifestarem à Suprema Corte para exigir justiça? São perguntas, cuja simples explicação demonstra que a epiderme de muitos políticos espanhóis e de uma parte considerável da sociedade é grossa e impermeável a essas "questões menores".
Depois do que aconteceu em novembro de 2011, o cenário conservador da Espanha, as opiniões e decisões que questionam avanços democráticos evidentes e vão contra uma uma opção da sociedade civil, são abundantes e inquietantes.
Por baixo do guarda-chuva da crise e da necessidade de sair dela, estão contornando questões cuja explicação e solução afetam a própria essência da convivência democrática. A tendência, claramente evidente, de evitar formas alternativas para sair da crise em si, com base no crescimento e não em cortes; permitir a deterioração da educação e a covardia institucional para enfrentar uma reforma exigida por todos; assumir o vazio do discurso político, fugindo da análise do mérito, cai na desqualificação e no insulto; escapar da reforma profunda da justiça, que a torna verdadeiramente transparente e eficaz; destruir a cooperação internacional que afasta a Espanha do que sempre lhe deu força no mundo; impor um modelo econômico que engloba os trabalhadores e exige muito pouco dos causadores do desastre; ou propiciar a negação da memória, da justiça e da indenização às vítimas, que coloca a Espanha no vagão dos países democráticos, são exemplos que mostram a degradação dos padrões éticos em um povo, apoiado desde as próprias instituições com discursos enganosos e que evidenciam a necessidade de uma verdadeira e definitiva mudança de paradigma.
É hora de energizar todos que sentem a necessidade de se engajar na luta legítima de superar o modelo de sociedade adormecida em favor do que representa uma sociedade dinâmica, solidária e comprometida com a consolidação de valores como transparência, participação, recuperação ética e defesa dos fracos, combatendo aqueles que querem impor um modelo fracassado e obrigar a manter o mais ameaçador silêncio.
A Comissão da Verdade sobre os crimes franquistas que se propõe deveria, com um caráter integrador e independente, aceitar os testemunhos não só das vítimas que ainda vivem e que arrastam seus corpos reivindicando com força seu direito de ser ouvido, exigindo uma resposta do Estado, até agora inexistente, mas também os testemunhos de quem causou a dor e de especialistas. E, com tudo isso, contribuir, através de suas conclusões, para determinar não apenas a verdade histórica, mas a indenização pessoal e coletiva que se deve às vítimas. Com isso se encerraria definitivamente a ferida que segue aberta e divide os espanhóis.
Uma sociedade se fortalece reconhecendo o que aconteceu em um momento dramático de sua história, assim como os acontecimentos que levaram à sua ruptura e à submissão à vontade do ditador. E neste sentido, não é o silêncio e o esquecimento que devem prevalecer na memória de um povo, mas as decisões que possibilitaram a verdade, a justiça e a indenização de quem sofreu a repressão.
A busca de 500 mil assinaturas para a petição para o Congresso é o mínimo ético que deve mover um povo para se reconectar com a dignidade que os outros lhe roubaram e deve ser a pedra para comprovar até onde estamos preparados para enfrentar com firmeza os tempos difíceis que temos vivido. As gerações que viveram o franquismo devem este esforço aos que não conheceram e ainda não sabem o preço que foi pago.
O juiz sul-africano Richard Goldstone, que em 1991 assinou o relatório sobre a violência em seu país, declarou em 1999, referindo-se à Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul. Uma Comissão de Verdade na Espanha é necessária e se aqueles que têm a obrigação de construí-la e desenvolvê-la não o fazem, terá que ser a mesma sociedade que a impulsione para recuperar a dignidade que as vítimas nunca perderam e poder construir um futuro que se sinta a paz com o passado.
Quando a apresentação das assinaturas ao Congresso terminar, espero e desejo que seu presidente receba com honras de Estado as vítimas que lhe entregarem aquela iniciativa e lhes ofereça seu apoio incondicional como representante da soberania popular, para dar prioridade a uma demanda cuja realização, além de ser justa, reconciliará verdadeiramente todos nós.
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