Por Matheus Rodrigues Gonçalves*
Ao final do julgamento da ADPF 153, que questionava a constitucionalidade da Lei de Anistia, em abril de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que o único caminho possível para a revisão da referida lei seria a sua alteração pelo Congresso Nacional. A Deputada Federal Luiza Erundina, com a colaboração do jurista Fabio Konder Comparato, apresentou então Projeto de Lei com o fito de fazer as devidas alterações na Lei 6.683/79, para que fossem excluídos do rol de anistiados os agentes oficiais que cometeram crimes de lesa-humanidade, como tortura e desaparecimento forçado. O projeto da deputada foi rechaçado pelos membros da Comissão de Relações Exteriores e Segurança Nacional, na Câmara dos Deputados, que alegaram que a Comissão da Verdade recém-aprovada já trataria deste assunto, sendo, portanto, desnecessária qualquer alteração na Lei de Anistia.
Ora, trata-se aqui de flagrante inverdade. É bem sabido que a Comissão da Verdade aprovada não prevê qualquer possibilidade de responsabilização dos agentes do Estado perpetradores de crimes contra a humanidade, justamente com base na ilegal Lei de Anistia de 1979. Ilegal na medida em que não é uma legítima lei de anistia, mas de auto-anistia, o que é condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e por diversas outras instâncias e tratados do direito internacional ratificados pelo Brasil.
Ademas, muito se fala acerca de um suposto “grande acordo nacional” pela aprovação da Lei de Anistia em fins dos anos 1970. Para os defensores dessa tese, todos os lados, torturados, sociedade e torturadores, fizeram concessões, o que permitiu uma anistia ampla, geral e irrestrita, o fim da ditadura civil-militar alguns anos mais tarde, e a satisfação final de todos. Ainda que tal tese fosse verdadeira, é preciso salientar que, de acordo com a legislação internacional, crimes contra a humanidade (e aqui se encaixam, por exemplo, os recorrentes casos de tortura e desaparecimento forçado), além de não terem caráter político, são hediondos, imprescritíveis e insuscetíveis de graça ou anistia, cabendo, portanto, mesmo hoje, após mais de 30 anos de vigor da Lei 6.683/79, a responsabilização dos agentes do Estado que foram responsáveis por muitos dos momentos mais ignóbeis da história brasileira.
Cabe aqui fazer uma reflexão acerca do caráter de auto-anistia da Lei 6.683/79. A auto-anistia tem o intuito de garantir proteção legal aos responsáveis por crimes contra a humanidade, o que acarreta de fato em injustiça e impunidade, configurando-se, pois, crassas violações do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Em sentença de 2001, a CIDH julgou as leis de auto-anistia incompativeis com as normas internacionais e, em acordo com o artigo 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, relembrou que os países signatários de tal pacto têm a obrigação de adaptar seu ordenamento jurídico interno e sua atuação em conformidade com as determinações do referido acordo internacional.
Concomitantemente, vale lembrar a condenação do Brasil pela CIDH em fins de 2010, em razão do desaparecimento, pela ditadura, de militantes de esquerda na região do Araguaia. A sentença da OEA estabeleceu o prazo de um ano para que o país inicie esforços para reverter o quadro de violação de direitos que não findou com a queda do regime militar. Dentre as exigências da Corte, estão a revisão da Lei de Anistia de 1979 e a criação de uma Comissão da Verdade com poderes de responsabilização. O governo brasileiro rapidamente refutou a condenação, e tem mostrado pouca disposição em cumpri-la. Até o momento, além de parcos trabalhos de identificação de corpos de ex-militantes de esquerda e de esparsas indenizações, temos somente a aprovação de uma Comissão da (meia) Verdade.
Um outro ponto a ser destacado são os resultados de estudos realizados pela professora de Ciência Política da Universidade de Minnesota, Kathryn Sikkink, que apontam que os países que responsabilizaram os agentes ditatoriais violadores de direitos humanos hoje sofrem menos com a violência institucional. A impunidade, diz a professora estadunidense, sinaliza aos agentes do Estado dos dias de hoje que eles podem continuar a torturar, a executar.
Nesse sentido, faz-se mister que seja seguida, na íntegra, a sentença da CIDH, e promova-se não só a busca por desaparecidos políticos, a criação de uma Comissão da Verdade, Memória e Justiça, mas também, e principalmente, a revisão imediata da Lei 6.683/79, pois trata-se de condição sine qua non para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Somente com a devida responsabilização dos agentes da ditadura que perpetraram crimes contra a humanidade poderemos afirmar que o regime de 1964 chegou ao fim.
*Matheus Rodrigues Gonçalves é graduando de Direito da UNIRIO e membro do Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura do PSOL/Niterói