quarta-feira, 21 de março de 2012

STF é provocado a rever julgamento sobre anistia

Por Marcelo Semer*



O Supremo Tribunal Federal está sendo provocado a rever seu julgamento sobre a Lei da Anistia.

Por requerimento da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), inicia-se nessa semana a apreciação dos embargos da decisão de 2010, que afastou por 7 votos a 2 a possibilidade de julgar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura.

Duas questões devem ser colocadas à mesa para os ministros, que não foram abordadas no julgamento anterior.

A primeira é a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que impõe o julgamento dos atos dos agentes públicos, ao considerar inválidas, à luz das Convenções Internacionais, todas as leis de autoanistia que pretenderam evitar apuração de crimes contra a humanidade.

A segunda, o movimento do Ministério Público Federal para o julgamento dos crimes que, diante do caráter de permanência, não sofreriam efeitos da Lei da Anistia ou da prescrição. Seriam assim os casos de sequestro ainda não solucionados.

A interpretação de que crimes de sequestro escapam à Lei da Anistia está longe de ser apenas uma doidivana aventura dos procuradores da República. Baseia-se em processos do próprio Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a validade da tese nos casos de extradição.

Em outros países, como o Chile e a Argentina, a mesma intepretação foi aceita e fundamentou processos contra dezenas de agentes do Estado.

A decisão da Corte Interamericana até agora foi desprezada pelo STF, que não se preocupou em fazer o controle de convencionalidade, ou seja, avaliar a compatibilidade da Lei da Anistia com as Convenções Internacionais que o país subscreveu.

Toda a estrutura do direito internacional reconhece, desde os estatutos do Tribunal de Nuremberg, a categoria de crime contra a humanidade a atos como assassínio e desaparecimento forçado da população civil, praticado por autoridades estatais. É pelo caráter de tutela da humanidade que não subsistiriam as leis nacionais de anistia.

Os argumentos do STF se centraram em três pontos: a anistia foi um acordo bilateral; foi o preço pago pelo retorno à democracia; a Constituição de 1988 a reconheceu.

É preciso lembrar que a Lei da Anistia foi aprovada em 1979, sob governo militar, e tendo o Congresso Nacional parte de seus membros nomeados pelo Executivo.

As eleições para governadores só aconteceriam três anos depois e para presidente esperaríamos mais uma década. Ainda havia censura a jornais e televisões, que em 1984 não puderam sequer transmitir a derrota da emenda das Diretas-Já.

É difícil caracterizar este como um acordo democrático.

Se os militares praticaram um Golpe em 1964, que legitimidade teriam para impor uma anistia de seus atos como condição para o retorno da democracia? Em qualquer outra circunstância, essa prática seria simplesmente considerada como chantagem.

A anistia à repressão que partiu do próprio poder se equipararia a um acordo do carcereiro com o preso: eu te solto e você não me processa pelas torturas que te infligi. Mas que condições teria o preso para dizer não naquele momento?

Talvez em 1988 ainda não estivéssemos em condições políticas de reconhecer tais circunstâncias. Felizmente, a tutela militar não mais perdura entre nós.

Muitos que se insurgiram contra a ditadura vieram a ser processados criminalmente. Foram presos, aposentados ou banidos - além das punições informais que suportaram nas torturas, nos estupros, nos desaparecimentos forçados e nos assassinatos.

Mas os agentes que praticaram tais barbaridades, em nome de uma abjeta política de governo, se esconderam sob os arquivos cerrados e os silêncios impostos.

Que democracia pode conviver com esse esqueleto no armário?

A maioria dos países da América Latina, que sofreram com ditaduras na mesma época, já iniciou o acerto de contas com seu passado. O Brasil é o único que tem sido totalmente refratário aos julgamentos.

Há quem atribua isso a um extemporâneo temor reverencial aos militares, cujas vozes até hoje recebem desproporcional repercussão na grande mídia.

Antony Pereira, diretor do Instituto Brasil no King's College em Londres, formula outra hipótese.

A jurisdicionalização da repressão no país estaria inibindo o Judiciário de apreciar atos da ditadura que indireta o julgariam.

"Os tribunais militares, mas também o STF, em que poderia haver apelação, foram responsáveis pelo processo de grande número de prisioneiros políticos - e por sentenciá-los, muitas vezes, com base em evidências extraídas sob tortura", escreveu em artigo no jornal Estado de S. Paulo, sábado (17).

Recentemente, o plenário do STF mudou a decisão que acabara de proferir, ao se dar conta que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei provocaria a anulação de outras quatrocentas.

Muitos criticaram a mudança tão abrupta.

Mas o mais grave para um juiz não é alterar sua posição se novas razões se apresentam. É se manter prisioneiro de seus próprios erros.

*Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia.

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