quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Desarquivar: um exorcismo necessário


Por Matheus Rodrigues Gonçalves, no Diário Liberdade

Depende exclusivamente de sanção da presidenta Dilma Rousseff a aprovação do Projeto de Lei 41 de 2010 (PL 41/10), também conhecido como Lei de Acesso às Informações Públicas. O Projeto foi originalmente concebido em 2009, pelo Poder Executivo, e previa a possibilidade de manutenção do sigilo eterno de alguns documentos considerados potencialmente nocivos à ordem e à segurança nacional. Após emendas sofridas na Câmara de Deputados, tal previsão foi suprimida, apesar das tentativas de praxe da ala conservadora da Casa de criar uma polêmica com a questão. Foi no Senado Federal que a situação se complicou. Diante da oposição expressada pelos senadores e ex-presidentes da República (um cassado e outro alavancado ao Executivo pela morte do presidente eleito — indiretamente) Fernando Collor de Mello e José Sarney, à modificação feita na Câmara, Dilma decidiu apoiá-los. Após meses de hesitação, entretanto, optou por mudar de posição e respaldar o fim do sigilo eterno para documentos oficiais. Em 25 de outubro de 2011, o projeto, com a emenda da Câmara, foi aprovado no Senado Federal. A data de sua aprovação é emblemática: em outro 25 de outubro, há 36 anos, Vladimir Herzog era assassinado nos porões do DOI-CODI.


Pela legislação atual, documentos classificados como reservados, secretos ou ultrassecretos podem assim permanecer por tempo indeterminado. Um avilte, puro e simples, não apenas à liberdade de informação de que todos gozamos em acordo com o artigo 5º, XIV, da Constituição Federal de 1988, mas também ao fundamental direito à Memória e à Verdade, e ao próprio Estado Democrático de Direito. Em um momento onde se discute a criação de uma Comissão da Verdade, a reparação a vítimas da ditadura civil-militar de 1964 e a responsabilização dos agentes oficiais torturadores, a abertura total dos arquivos do período em questão coloca-se como ponto nevrálgico para que efetivos avanços se concretizem. Some-se a isso a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em fins de 2010 que, entre outras sentenças, determinou que tais documentos fossem disponibilizados a todo e qualquer interessado. Nesse sentido, a aprovação do PL 41/10 é um inegável avanço em matéria de direitos humanos.



Em seu artigo 21, o PL 41/10 determina:
Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais.
Parágrafo único. As informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso.


De acordo com este dispositivo, em se tratando de temática dos direitos humanos (como tortura, execução sumária e desaparecimento forçado), não há que se falar em negação do pedido de acesso às informações, estando ele, pois, automaticamente aprovado. Concomitantemente, o parágrafo único do referido artigo impede que documentos que tratem de violações de direitos fundamentais por parte de agentes estatais recebam o selo de informações sigilosas, secretas ou ultrassecretas. Assim sendo, os arquivos relacionados (não só, mas principalmente) aos crimes de lesa-humanidade perpetrados por agentes ditatoriais devem ser, no momento imediatamente posterior à sanção presidencial, desclassificados e postos à disposição da população. O PL prevê ainda diversos mecanismos que facilitam o acesso a tais informações, depois de sua liberação. Entre eles, a colocação de todos os documentos na internet, a necessidade de oferecer respostas imediatas (ou, quando não for possível, em até vinte dias, prorrogáveis por mais dez) aos pedidos, e a proibição de que sejam questionados os motivos dos mesmos.
Outro artigo que vale ser mencionado é do de número 31. Diz ele:


O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.
§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:
I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e
II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem


Por si só, o parágrafo primeiro representa uma espécie de freio ao caráter progressista que possui o PL 41/10, visto que permitiria a divulgação dos nomes de agentes ditatoriais que constam nos documentos hoje secretos em apenas três situações: em caso de autorização expressa da pessoa em questão; diante de previsão legal; ou após 100 anos decorridos desde a produção do documento (embora os membros da Comissão da Verdade pudessem, ao menos em tese, ter acesso a ele). Familiares e estudiosos não teriam acesso a tais nomes, o que dificultaria a ida à justiça com vistas a responsabilizações civis e/ou criminais, bem como a produção científica e teórica sobre o assunto. Os parágrafos posteriores, porém, cuidam para que tal retrocesso não seja concretizado:


§ 3º O consentimento referido no inciso II do § 1º não será exigido quando as informações forem necessárias:
(...)
III - ao cumprimento de ordem judicial;
IV - à defesa de direitos humanos;
(...)
§ 4º A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.


Ora, na medida em que o inciso II do § 1º cria exceções à regra geral da garantia de sigilo por 100 anos aos dados pessoais, através da autorização expressa ou previsão legal; em que o § 3º extingue a necessidade de tal autorização expressa, em casos de cumprimento de ordem judicial e de defesa dos direitos humanos; e o § 4º impede que tal sigilo tenha supremacia sobre as “ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”, temos que, a despeito da regra geral e da autorização expressa, tais informações devem ser desclassificadas quando dos referidos casos. Donde se conclui que o artigo 31 do PL 41/10 prevê a possibilidade de disponibilização dos dados dos agentes ditatoriais responsáveis por violações de direitos humanos.


Se comparado à aprovação da Comissão da Verdade nos moldes em que foi aprovada, o PL 41/10 é um avanço em matéria de direitos humanos. Permitirá que muitos fatos obscuros da história recente do país sejam conhecidos e estudados, e que diversos crimes sejam esclarecidos e seus perpetradores, responsabilizados. Encontrará dificuldades, é certo. Muitos documentos de extrema importância foram, continuam e continuarão a ser destruídos nos quarteis e repartições públicas Brasil afora. Apesar disso, sua aprovação, devida em grande parte à pressão da sociedade civil e dos grupos de defesa dos direitos humanos, é um dos exorcismos (juntamente a uma verdadeira Comissão da Verdade) de que precisamos para de fato abandonarmos o ranço autoritário que nos acompanha há vinte e seis anos.

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