sexta-feira, 30 de março de 2012

“Queremos Justiça”, cobra Victória Grabois, do Grupo Tortura Nunca Mais - RJ

Por Samir Oliveira

A vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Victória Grabois, fez um emocionado pronunciamento no primeiro dia do 5º Encontro Latino-americano Memória, Verdade e Justiça, que começou nesta sexta-feira (30) e ocorre até domingo em Porto Alegre. Victória é filha de Maurício Grabois, fundador do PCdoB e comandante da Guerrilha do Araguaia. Além do pai, ela perdeu o irmão, André Grabois, e o marido, Gilberto Olímpio, para a ditadura militar brasileira.

Victória participou do processo protocolado por 22 familiares de mortos e desaparecidos políticos em 1982 que buscavam os corpos dos guerrilheiros do Araguaia. Após 16 recursos protocolados pelo governo federal – sendo que os últimos, em 2003, partiram do ex-presidente Lula (PT) -, a juíza Solange Salgado proferiu uma sentença favorável aos autores da ação.

Paralelamente a isso, em 1995, os familiares resolveram ingressar com uma demanda na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 2009 o órgão repassa o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tribunal vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA) que, em dezembro de 2010, condenou o Estado brasileiro por não ter localizado os corpos dos guerrilheiros do Araguaia. Entre outras determinações, a sentença da CIDH obriga o Brasil a se desfazer de obstáculos jurídicos que impedem a responsabilização penal dos agentes que cometeram crimes de lesa humanidade durante a ditadura, como a Lei da Anistia.

Em seu desabafo, Victória Grabois reclamou que as pessoas que antes apoiavam os familiares de mortos e desaparecidos políticos, aglutinadas nos antigos comitês pela anistia, hoje ocupam os espaços institucionais da política e não se interessam por essas reivindicações. “Com a redemocratização, a maioria dos nossos companheiros foi para os partidos políticos, se tornou parlamentar e nos abandonou. Ficamos sem chão”, recorda.

Ela critica o Palácio do Planalto por, até agora, ainda não ter indicado os integrantes da Comissão da Verdade e não ter cumprido todas as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Queremos que nossos familiares possam ter uma sepultura digna. Como cidadã brasileira, tenho o direito de enterrar os meus familiares”, desabafou Victória.

Ela contou que uma das mães de um guerrilheiro desaparecido, hoje já falecida, ainda mantinha viva a esperança de que o filho retornaria. “Ela colocava o prato do filho todos os dias na mesa de jantar. Vocês não podem imaginar o sofrimento de uma família que nunca recebeu os restos mortais do seu filho”, emociona-se.

Victória Grabois ressaltou que só conseguirá perdoar o Estado no dia que souber o paradeiro dos corpos dos seus parentes desaparecidos. “O perdão só virá quando entregarem os restos de todos os 70 guerrilheiros do Araguaia. Queremos Justiça”, conclamou.

Vítima das ditaduras uruguaia e argentina foi reconhecida pelo atual governo do Uruguai

Diferentemente do Brasil, o governo uruguaio vem cumprindo uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que o condenou a reconhecer a responsabilidade do Estado no sequestro e desaparecimento dos pais de Macarena Gelman. Na semana passada o presidente José Mujica, ao lado do presidente da Suprema Corte de Justiça e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronátucia, organizou um ato público onde reconheceu a participação do Uruguai no sequestro e no desaparecimento de María Claudia de Gelman, sequestrada em setembro de 1976 na Argentina.

María Claudia estava grávida de sete meses e foi levada para o macabro centro de tortura da Operação Condor em Buenos Aires, a oficina mecânica conhecida como Automotores Orletti. De lá, foi trasladada a Montevidéu, onde foi vista pela última vez, ainda em 1976. Sua filha, Macarena Gelman, recém-nascida, foi entregue a um ex-policial uruguaio.

Somente em 2000, aos 23 anos de idade, Macarena descobriu sua verdadeira identidade, graças a uma investigação particular contratada pelo seu avô materno. Juntos, eles ingressaram com uma ação penal na Justiça uruguaia contra os agentes do Estado que sequestraram e desapareceram María Claudia de Gelman e suprimiram a identidade de Macarena. Devido a lei de anistia uruguaia, o processo encalhou nos tribunais e eles resolveram provocar a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2006.

Presente no 5º Encontro Latino-americano Memória, Verdade e Justiça, Macarena Gelman disse que se sentiu “aliviada” com o cumprimento da sentença por parte do governo uruguaio, mas ressaltou que ainda há muito o que fazer. “A sentença contém reivindicações históricas da sociedade civil e de todos que foram afetados pela ditadura. Foi um ponto de partida para continuarmos avançando na reconstituição da verdade com Justiça e memória”, observou.

Para ela, é impossível conquistar apenas um desses três aspectos. “Não é possível ter verdade sem Justiça ou Justiça sem verdade. Quem acredita que podemos fazer de outra maneira está se enganando”, entende.

Juan Gelman: “encontrar um desaparecido é honrá-lo, dar-lhe um lugar na memória”

Por Joselia Aguiar


Juan Gelman, quase 82, para muitos o maior poeta de língua espanhola das Américas, está a poucas semanas de encerrar a jornada dolorosa que começou em 1976, quando o primogênito, Marcelo, e a nora, María Claudia, grávida de oito meses, foram presos pela ditadura militar na Argentina.  

Gelman já conseguiu enterrar Marcelo. Falta sepultar María Claudia, de quem podem ser os ossos encontrados num quartel uruguaio no último dia 14. 

O resultado do exame de DNA sai em abril – quem sabe nos dias em que Gelman vai estar em terras brasileiras, aonde chega do México, lugar do seu exílio, para a primeira Bienal do Livro de Brasília, entre os dias 14 e 22.

Faz mais de uma década que Gelman visitou o país de Drummond e dos irmãos Campos, a quem cita como alguns dos preferidos. Na breve conversa que tive com o poeta por telefone na última segunda-feira, ele me disse, com sua voz sempre muito baixa e gentil, que pode, sim, viajar a outras partes do país para participar de eventos literários (atenção colegas que fazem curadoria: não percam a oportunidade).

Se não for de María Claudia, o esqueleto será de mais um dos desaparecidos que sua missão, ao mesmo tempo pessoal e política, ajudou a sepultar. Não houve só angústia na busca. A neta Macarena, um dos cerca de 500 bebês que o regime militar fez sumir com adoções ilegais, Gelman pôde encontrar em 2000, data em que a moça enfim soube de sua verdadeira filiação.  

O senhor está às vésperas de encerrar a busca que iniciou há 35 anos. “Cada vez que aparecem ossos, fico ansioso, desejando que seja finalmente. Não sei se vai ocorrer uma confirmação. O que encontraram foi um esqueleto completo, isso é importante para a identificação. Aguardamos agora o resultado do DNA.”

O que representa, pessoal e politicamente, localizar os desaparecidos? Aqui no Brasil também se quer mudar a lei de Anistia para abrir arquivos. “Meu filho foi assassinado com um tiro na nuca pela ditadura e ficou 13 anos desaparecido. Até que seus restos foram encontrados na Argentina. Pude dar-lhe uma sepultura.  É reparador. Enterrar os mortos queridos é algo que existe desde tempos muito antigos. Encontrar um desaparecido é  honrá-lo, dar-lhe um lugar na memória. A palavra ‘desaparecido’ esconde quatro atos  – o sequestro, a  tortura, o assassinato e o desaparecimento. Porque sabemos que não estão desaparecidos, sabemos que estão mortos.”

O senhor, que continua a colaborar com regularidade nos jornais, escreveu há pouco tempo que a crise econômica mundial pode ter como consequência o surgimento de novos regimes autoritários. “Sim, tudo isso é possível. Penso que a crise pode durar muito tempo. Mas me preocupa muito nesse momento a situação no Oriente Médio.  Esse senhor presidente do Irã nega a Shoah, tem atitudes profundamente autoritárias. Com a situação do Irã, pode-se chegar, oxalá que não, a um conflito atômico, o que seria uma tragédia mundial.”

A poesia como resistência é outro dos temas que costuma abordar nos artigos que escreve. “O enriquecimento do leitor com a poesia se dá ao descobrir caminhos interiores que ignorava ter. A crise não é só econômica, é sobretudo espiritual, de honra e solidariedade. Faz muitos anos que impera um darwinismo brutal, terra fértil para qualquer autoritarismo. Mas a poesia atravessa os séculos, apesar das catástrofes naturais ou produzidas pelo homem. É uma situação mais ou menos inevitável. Para o leitor, evitável, mas para quem escreve, não.”  

Ao Brasil, o senhor chega para comparecer a uma bienal. Na abertura da feira de Madri do ano passado, disse uma frase engraçada: ”há tantos títulos, tantas tentações à venda, que eu mesmo não consigo comprar nada e me admiro do leitor que visita uma feira de livros”.  “Sim, há tantos livros que não compro nenhum. Mas as feiras vendem muitos; significa que talvez haja leitores que conseguem escolher melhor do que eu.”

Alguns autores, como Mario Vargas Llosa, estão muito preocupados com a possibilidade de, com a internet, termos cada vez menos leitores. “As notas e resenhas na internet provocam curiosidade para os livros. A internet me parece uma boa ajuda para conhecer autores, principalmente os que ainda não foram traduzidos. Não estou certo de que o livro impresso vá desaparecer.”

 ***

De Juan Gelman, vi que as livrarias brasileiras têm poucos títulos: ”Amor que serena, termina?”, cuja nova edição a Record anuncia para o evento em Brasília; “Isso”, que saiu pela editora da UNB; e “Composições”, o mais recente, pela Crisálida. É hora de colocar nas prateleiras obras como “Gotan”, de poesia, e “Miradas”, que reúne alguns dos seus artigos mais recentes.

Sérgio Ricardo: 'A ditadura deixou o medo de transformação como herança'

Da Rede Brasil Atual


Prestes a completar 80 anos, em 18 de junho, o cantor e compositor Sérgio Ricardo nasceu em Marília (SP) e tornou-se um dos mais importantes nomes da música brasileira. Instalado no Rio de Janeiro em 1952, ele fez parte do primeiro núcleo de compositores da Bossa Nova e participou do famoso concerto de Bossa Nova do Carnegie Hall, em Nova York, em 1962.

Sérgio Ricardo também ficou famoso por criar músicas com forte temática social e de protesto, caso de “Zelão”, e compor a trilha musical de peças teatrais e filmes, como “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna; e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” e “Terra em Transe”, todos de Glauber Rocha. Em 1967, sua música “Beto Bom de Bola” levou uma vaia tão estrondosa no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, que ele quebrou o violão no palco e o atirou na plateia.

Como boa parte dos compositores e cantores da música brasileira, Sérgio Ricardo não escapou da truculenta censura federal. “A minha relação com ela foi sempre a pior possível. Eu vivia sendo chamado para explicar letra de música e prestar depoimento, como se isso fosse transformar alguma coisa ou fazer uma guerra”, relata. “Levei uma pobre produtora de disco quase à falência, porque retiraram das bancas o meu disco ‘Aleluia’, do qual ela tinha feito uma grande tiragem. Foi um projeto que eu fiz em homenagem ao (Che) Guevara, um grande herói internacional que foi assassinado. Ninguém sabe que música é essa. Até hoje não existe forma de poder botá-la no ar, também porque o assunto envelheceu. A história se incumbiu de fazer esquecimentos por aí”, lamenta.

Resistindo de todas as maneiras, Sérgio Ricardo ficou 20 anos sem gravar, entre 1980 e 2000. Seu trabalho mais recente é “Ponto de Partida”, registrado entre setembro de 2007 e fevereiro de 2008, e lançado pela gravadora Biscoito Fino. “A principal herança que me deixaram foi o esquecimento. Foi aquela coisa de me proibirem de tocar no rádio e na televisão, e de aparecer nos meios de comunicação. Acabaram me transformando num desconhecido. Eu não estou aqui à procura de sucesso nem de glória. Mas acho que foi injusto o que aconteceu comigo.”

O compositor acrescenta: “Não interessa a injustiça feita comigo. O que importa é o Brasil no setor cultural, tanto no teatro como no cinema, na televisão e no rádio. Uma coisa cruel, que se desenvolveu durante a ditadura, foi o jabá. A cultura brasileira só acontece através do jabá. Se pagou, você é tocado no rádio e aparece na televisão. Essa distorção dos valores aniquilou com a alma brasileira. Você não ouve mais choro, serenata e um canto de amor. Só ouve um rock desesperado e agônico. O próprio samba, que era tudo o que poderíamos ter de tradição a ser conservada, está sendo esfacelado. Aos 80 anos, ver uma realidade brasileira dessa natureza dá uma tristeza enorme em quem faz arte neste país”. 

Leia a entrevista completa.

Você acredita que ainda há reflexos do regime militar no Brasil? Nós conseguimos superar todos os fantasmas daquele período?

Eu acho que os fantasmas ainda existem. Não foram superados inteiramente e talvez tenha sido essa a razão da interrupção do processo anterior, porque, no momento em que se constatou que já estava conquistada a desesperança de uma mudança, a força resolveu ceder lugar aos novos dirigentes do país. Eu percebo que ficou instaurado um medo no povo brasileiro de uma tentativa de transformação. Ficou mesmo estabelecido que o perigo está à volta. Então todos passaram a ter medo de uma reviravolta e das reivindicações que o Brasil precisava ter utilizado para transformar a realidade e que não foram levadas a efeito.

O país teve uma série de problemas, como a falta de atitudes políticas e reivindicatórias de classe, e a cultura brasileira, que naufragou. Naturalmente, alguns deles foram resolvidos no governo do Lula, um pouco mais tarde. Mas os outros continuam existindo. A cultura, que é meu terreno pessoal, é o setor mais abandonado neste momento. Parece que se quer descer ao nível da miséria do povo brasileiro. Ela chegou a um momento em que não se tem mais perspectivas de melhora. Já se instaurou uma debandada dos princípios e das raízes brasileiras. A forma com que se produzia cultura no país acabou por completo. Eu não fico com tanta radicalidade de que estejamos no fim, mas a falta de reivindicação da própria classe cultural já demonstra que esse medo deixado pela ditadura permanece na nossa realidade.

Houve projetos inovadores e importantes que foram abortados em função do regime militar?

Acabou a censura, porque não há mais o que censurar. Não se está fazendo nada que, pelo menos, indicasse a necessidade de uma censura, porque a nossa realidade ficou amorfa. Ninguém luta por nada. Eu não gostaria de generalizar, porque há muitos setores que estão se movimentando, mas num nível muito modesto. Não ao nível de uma verdadeira reivindicação transformadora, mas, sim, de uma queixa. O que existe são queixas e poucos líderes transformando as coisas. Lideranças com consciência de classe. A classe cultural, por exemplo, está abandonada. Não se vê reuniões da classe querendo transformar alguma coisa. Só se vê todo mundo tentando se ajustar aos moldes que foram lançados como participação do governo na produção cultural, que é uma coisa que está inteiramente furada.

A produção cultural no país, neste momento, é falha e completamente desvinculada da alma brasileira. Na música, virou uma coisa americana e inglesa. Virou cópia de outros países. O sistema de comunicação está escravo de um sistema inteiramente apodrecido e em decadência no mundo inteiro. O mundo não está podendo mais suportar o declínio desse capitalismo selvagem que está por aí e já está perdendo todas as vestimentas. Não se cobre mais nada. O corpo está difuso e só falta dar o tiro de misericórdia. É o que está faltando para que a gente mude o sistema no mundo inteiro. Em decorrência, principalmente no Brasil, de um amedrontamento que foi solto no ar pela própria tradição da ditadura. Está difícil de a gente conciliar os interesses gerais numa luta reivindicatória que possa transformar alguma coisa.

Há um medo que você percebe na nova geração de uma coisa que não existe mais. Parece que existe uma repressão à espera de alguma rebeldia qualquer para poder torturar, prender, matar, transferir para outro país, fazer o diabo. Ou seja, esse tipo de coisa que ficou na memória do povo brasileiro, dessa tristeza que foram os anos de chumbo, da ditadura, virou algo da cultura brasileira, de repente. É algo que precisa ser destruído imediatamente. 

Quais são as lembranças que você tem desse período?

As piores possíveis. Eu assisti durante toda a ditadura a decadência e destruição dos valores brasileiros, lentamente. Os melhores professores foram embora do país. O pensamento brasileiro, a transformação que estava na cabeça de todos e a revolução que se estava fazendo no sentido de salvar o país foi por água abaixo. Isso eu fui verificando durante todo o momento da ditadura, em todos os estandes dela. A cultura, principalmente, que é a alma do povo, ficou prejudicada da forma mais escrachada possível. Tudo que se faz no país está sem a alma que deveria estar presente e é falsa. Estamos vivendo uma farsa de um país desenvolvido, que, na verdade, não tem desenvolvimento algum. É algo etéreo, mentiroso, com muitas coisas fantasiadas pela imprensa, pelo sistema de comunicação e pela chamada intelligentsia, que não tem mais quase nada.

 Como era sua relação com a censura?

A minha relação com a censura foi sempre a pior possível. Eu vivia sendo chamado para explicar letra de música e prestar depoimento, como se isso fosse transformar alguma coisa ou fazer uma guerra. Não fez coisa alguma. Levei uma pobre produtora de disco quase à falência, porque retiraram o meu disco “Aleluia” das bancas, do qual ela tinha feito uma grande tiragem, recolheram e jogaram tudo fora. Sei lá o que fizeram. Foi um projeto que eu fiz em homenagem ao (Che) Guevara, um grande herói internacional que foi assassinado. Ninguém sabe que música é essa. Até hoje não existe forma de poder botar essa música no ar, também porque o assunto já envelheceu por si só. A história se incumbiu de fazer esquecimentos por aí. Além de tudo, a principal herança que me deixaram foi o esquecimento. Foi aquela coisa de me proibirem de tocar no rádio, na televisão, e de aparecer nos meios de comunicação. Acabaram me transformando num desconhecido. Eu não estou aqui à procura de sucesso, nem de glória. Mas acho que foi injusto o que aconteceu comigo.

Não interessa a injustiça feita a meu respeito. O que importa é o Brasil, que está no caos no setor cultural, tanto no teatro como no cinema, na televisão e no rádio. Uma coisa cruel, que se desenvolveu durante a ditadura, foi o jabá. A cultura brasileira só acontece através do jabá. Se pagou, você é tocado no rádio e aparece na televisão. Essa distorção dos valores aniquilou com a alma brasileira. Você não ouve mais choro, serenata, um canto de amor. Só ouve um rock desesperado e agônico, e esses bate-bocas que não levam a nada. Músicas terríveis, péssimas. O próprio samba, que era tudo o que poderíamos ter de tradição a ser conservada, está sendo esfacelado. É terrível. Aos 80 anos, ver uma realidade brasileira dessa natureza dá uma tristeza enorme para quem faz arte neste país.

Também havia muita autocensura na época do regime militar?

É lógico. Principalmente pelos escravos do sistema. Os meios de comunicação, por exemplo, faziam autocensura para não ser prejudicados. Imagine você receber da Kolynos uma grana pretíssima para poder produzir um programa e depois aparecer um sujeito que fosse falar contra o regime. Eles seriam censurados e perderiam a grana toda. Quer dizer, tudo gira em torno do dinheiro. O sistema está pobre e caindo pelas tabelas. Eu estou ficando velho para botar panos quentes nas coisas. O problema todo é essa porcaria desse capitalismo que não quer ir embora. 

 Há saídas?

Há milhões de saídas. É só acabar com essa porcaria. Vamos inventar outro regime, meu Deus do céu. Não é possível que não exista uma solução para esse tipo de problema. Os poderosos não deixam. Os donos do dinheiro não vão permitir. Vão jogar bomba atômica e o mundo vai acabar. Pronto. É isso o que vai acontecer. Eu não sou Pitonisa para descobrir o que vai ser. O que acontece é que não há mais condições de ficar falando em meio termo. Hoje, você tem de abrir a boca e dizer a verdade, porque é impossível conversar com quem quer que seja. Eu não vou declinar aqui a minha indignação diante de qualquer sistema de comunicação que me venha entrevistar. Eu estou dizendo aquilo que acho o que é verdade e fim de papo. Essa porcaria não tem mais como funcionar. Está precisando de uma reforma geral. O Brasil está precisando de um retrocesso. É melhor começarmos de Pedro Álvares Cabral de novo. 

Como você recebe a notícia de que os militares comemoraram o golpe?

 Aqui se faz festa para tudo. Quem está no poder faz festa. Só não tem festa para miserável. Eu queria ver qual é o dia do favelado, que poderíamos comemorar com champanhe e com o país inteiro abrindo mão de seus lucrozinhos para poder fazer uma transformação na favela do Brasil. Isso é o que me interessa. Saber que militar vai fazer comemoração de uma porcaria daquelas, para mim, não quer dizer nada. Eu recebo como um insulto, inclusive por ter sempre um sistema de comunicação dando essa porcaria. Isso não é coisa que se faça. O próprio Exército poderia fazer uma autocrítica e saber que aquela não é a condução certa. E lá dentro eu tenho certeza que tem gente que entende que isso não é coisa que se faça, comemorar uma farsa e uma entrega do país ao império econômico. Aquilo foi uma coisa indigna que o Brasil teve de viver e que agora esquecem para poder comemorar. Isso é uma indignação.

Cineclube Frei Tito: SICKO



O Núcleo Frei Tito de Direitos Humanos, Comunicação e Cultura do PSOL/Níterói convida a todos para a próxima sessão de seu cineclube, no dia 03 de abril (terça-feira):

18h - Exibição do filme "SICKO", de Michael Moore;

20h - Debate com:
Janira Rocha - Deputada Estadual - PSOL/RJ
Paulo Eduardo Gomes - PSOL/Niterói
Cláudia March - Professora e Pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Eduardo Stotz, pesquisador da Fiocruz e do Centro de Estudos Victor Meyer


03 DE ABRIL

AUDITÓRIO DO SERVIÇO SOCIAL (SALA 405)
BLOCO E
CAMPUS DO GRAGOATÁ - UFF


"Sou Fruto do cineclubismo e cada cineclube que nasce é como mais um filho que germina, além das ideias políticas que vem embutidas nesse cineclube especificamente ligado ao PSOL. Vida longa ao Cineclube Frei Tito!" (Silvio Tendler)


Link do evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/370434419657846/

Viúva e filhas buscam na Justiça retificação da certidão de óbito de vítima da ditadura

Da Rede Brasil Atual

Foram ouvidas ontem (29), no fórum da Praça João Mendes, em São Paulo, as testemunhas no processo que pede a retificação da certidão de óbito do militante comunista João Batista Drumond. A morte do militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi registrada como consequência de um atropelamento na esquina da Avenida 9 de Julho com a Rua Paim, na região central da capital paulista, em 1976.

Na ação movida pela viúva Maria Ester Cristelli Drumond e as filhas, Rosamaria e Silvia, para corrigir a certidão de óbito, ela sustenta que Drumond foi morto sob tortura dentro do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), para onde foi levado após ser preso durante operação policial que desarticulou uma reunião do PCdoB em uma casa no bairro da Lapa, na zona oeste da capital paulista. Na ação militar, dois militantes foram mortos.

Segundo o relato de Aldo Arantes, uma das testemunhas ouvidas hoje, ele e outros companheiros capturados logo depois de deixarem a casa souberam da morte de Drumond, no DOI-Codi, por um carcereiro que disse que um prisioneiro morto sob tortura carregava um exemplar do jornal Classe Operária escondido em um pacote de biscoito. Segundo Arantes, pouco antes de ser preso, Drumond tinha em seu poder uma edição do jornal do partido.

Também foram ouvidos hoje o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência Nilmário Miranda, o presidente da Comissão de Anistia e secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, e o ex-militante Wladimir Pomar. Após a manifestação do Ministério Público, o processo será apreciado pelo juiz Guilherme Madeira Dezem.

Depois da audiência, Abrão ressaltou que o Judiciário, devido ao poder de investigação, tem um papel fundamental no resgate da memória e da verdade sobre o regime militar. “Esse caso é um bom exemplo de como, independentemente de sanções penais, o Poder Judiciário, ao lado dos poderes Executivo e Legislativo, também tem responsabilidade no reconhecimento e na construção do direito à verdade”.

Para ele, a Justiça tem um papel complementar ao que será exercido pela Comissão da Verdade em fazer um relato histórico sobre o período da ditadura. “É uma verdade individualizada, para cada situação, para satisfação do direito fundamental do cidadão naquilo que lhe compete exigir em termos do direito de saber”, destacou Abrão.

Duddu Barreto Leite: "Se abandonei o teatro, foi por perseguição política"

Da Rede Brasil Atual

Duddu Barreto Leite, ou melhor, Luiza Helena Barreto Leite Valdez,  de 80 anos, nasceu numa família de artistas. É filha da atriz e poetisa Maria Barreto Leite; sobrinha da atriz, professora, produtora e jornalista Luiza Barreto Leite; prima dos cineastas Luiz Alberto e Sergio Sanz; e irmã de Vera Barreto Leite, que foi modelo internacional e é atriz do Teatro Oficina. “Eu sou da segunda geração de um grupo de intelectuais e artistas”, comemora.

“Eu nasci na ditadura de Getúlio Vargas. Tive um processo democrático entre o Getúlio e o Getúlio. Passo por uma ascensão democrática, que foi tão extraordinária que, em menos de dez anos, conseguimos levar o Brasil a ter uma música exportada para o mundo inteiro, um cinema ganhando prêmios internacionais e um teatro de Cacilda Becker, que consegue ser aplaudida em pé em Paris”, destaca. Qualificando o povo brasileiro de fênix, por renascer das cinzas, ela acrescenta que, nesse novo momento de democracia, em menos de 15 anos votou-se num operário para ser presidente do Brasil. 

Porém, após se destacar como produtora, diretora e atriz de teatro, cinema e televisão, Duddu se viu obrigada a abandonar a carreira em função de perseguição política. “Todas as peças que eu queria encenar eram cortadas pela censura. O Cesar Vieira transformou um personagem masculino em feminino da peça ‘O Elevador’ para que eu fizesse. Mesmo assim, não tendo nada a peça que pudesse ser considerado subversivo, só pelo fato de ter o nome do Cesar Vieira e de eu estar no elenco, ela foi perseguida. Então bastava você existir como um ser pensante”, frisa. Ela foi presa, sendo submetida a interrogatórios durante 4 meses.

Garantindo que lutou e trabalhou muito a vida toda, Duddu Barreto Leite trabalhou num manicômio judiciário, atuando com teatro aplicado à recuperação de presos em Piraquara, no Paraná. É autora de um livro sobre teatro aplicado à educação e planeja escrever outro, “A Outra Fase da História”, demonstrando como o golpe de 1964 não foi arquitetado pelo exército, mas por integristas que se infiltraram no exército, com apoio do governo norte-americano.

Leia a seguir a entrevista completa com Duddu Barreto Leite.

Quais são os reflexos do regime militar no Brasil atual? E nós conseguimos superar todos os fantasmas daquele período?

Toda repressão forma uma geração. As professoras que estão atuando nos últimos 30 anos foram filhas da ditadura. Elas foram formadas por professores que serviram à ditadura. Então, evidentemente, essa é uma consequência muito grande. Todos os professores liberais da época foram perseguidos, mortos ou colocados fora do país. Nós estamos falando de um processo que acabou há menos de 30 anos. Então, mesmo as professoras que sejam liberais na sua sala de ensino têm dificuldades de usar a sua ação liberal. 

Eu tenho uma grande amiga que se formou bem depois disso. Só que ela está o tempo todo convivendo com diretores e inspetores de alunos que serviram à ditadura. Então é lógico que isso não acaba num passe de mágica. Agora nós só conseguimos resistir, porque tínhamos vivido o processo democrático anteriormente. Então é um fato histórico muito lento. Tanto nós fomos libertados, que temos hoje como presidente do país uma GTA (Grupo Tático de Ação), que atuou ativamente no processo de resistência. Apesar disso, os militares têm a ousadia de fazer uma festa em pleno 2012, comemorando a dita revolução. Não foi uma revolução, mas uma usurpação do poder e uma quebra da Constituição nacional. Tudo isso tem que ser muito bem claro e bem dito.

Quais são as piores e as melhores lembranças desse período?

Não vou falar de tortura, porque é óbvio. Não vou falar de prisão, porque também é óbvio. Eu vou falar da castração da inteligência nacional. Isso foi o pior. Em qualquer processo ditatorial, eles perseguem, matam e torturam, só que esses acabaram com todo o processo de inteligência nacional. A área científica foi quase toda expulsa do Brasil. A área intelectual foi perseguida, presa, torturada e morta. A área da arte foi perseguida e exilada. Então eles destruíram o potencial da inteligência nacional. E também perseguiram os estudantes que estavam resistindo e não estavam a favor daquela coisa horrorosa que estavam implantando nesse país. Eles eram o potencial da inteligência nacional. Então acabaram com três gerações – a existente, a em formação e a embrionária.

Vou falar da minha área. Eu fazia teatro, televisão e cinema. Era produtora, diretora e atriz. Se eu abandonei o teatro, foi por perseguição por política. Todas as peças que eu queria encenar eram cortadas pela censura. O Cesar Vieira transformou um personagem masculino em feminino da peça “O Elevador” para que eu fizesse. Mesmo assim, não tendo nada a peça que pudesse ser considerado subversivo, só pelo fato de ter o nome do Cesar Vieira e de eu estar no elenco, ela foi perseguida. Então bastava você existir como um ser pensante. Para mim, ter sido presa e nunca ter sido colocada na Tiradentes, mas ter ficado sobre interrogatório durante 4 meses, era individual. Eu quis resistir. Eles vinham me atacar e eu sabia disso. O que acho pior é que essa gente, em nome de uma pátria amada, idolatrada, salve, salve, perseguiu três gerações da intelectualidade brasileira. Bastava pensar que você era um inimigo.

Você acha que o teatro foi mais perseguido do que as outras artes e projetos inovadores foram abortados em função da ditadura?

Foram. Mas não só no teatro. No cinema, no circo, em todas as expressões artísticas. Pintores foram perseguidos. Arquitetos foram perseguidos. Os cientistas, então, foram dizimados. Eu tenho uma amiga, que era professora de História, chegaram à sala dela e rasgaram os livros. Igual a Inquisição. E quando foi contra, ela foi presa. Não era uma pessoa com visão socialista. Não era nem de movimento de resistência. Só era uma boa professora de História e não admitia que fossem rasgados os livros com a História. Então a perseguição foi muito maior do que aparece na literatura brasileira, porque ela mostra apenas o corpo de resistência. Aqueles que foram presos, torturados e mortos. Estou falando das pessoas que não pertenciam ao movimento de resistência e que foram castrados na sua própria essência. Como se formou um estudante que não tinha acesso à informação e não tinha professores libertários? Que estudante é esse? Quem fez isso com eles?

Você acredita que havia uma autocensura muito forte?

Claro. Como é que você forma sua opinião? Através de informação. Se você não é informado que eu existo, não vai formar nenhuma opinião a meu respeito. Então vai tomar posições na sua vida de acordo com as informações que você recebe. Coloca-se uma censura em todos os meios de comunicação – na escola, na rádio, na televisão, no cinema, no jornal, na revista e nas igrejas. Então você castra uma geração inteira por 30 anos de informação e quer que o povo que nasça dessa catástrofe tenha opiniões formadas libertárias? 

É um bando de fascistóides que formaram uma geração fascistóide. E agora estão reclamando do corpo político que está aí? Está aí porque eles formaram durante anos, castrando os que pensavam e elegendo os que se vendiam. E agora vêm me falar em corrupção? Como é que nós sobrevivemos? Como é que os Lulas e as Dilmas ainda sobreviveram? Sobreviveu, porque estava no movimento de resistência. Estava tomando pau no meio da rua e saindo do país. Foi assim que a gente resistiu. Então você há de convir que o mal é muito maior do que aquilo que a literatura brasileira diz. E essa geração reacionária que hoje representa o Brasil foi formada por eles.

Tem outro detalhe muito importante que é o seguinte: não foi o Exército nacional que fez a "revolução" de 64. Quem a fez foram os integralistas, que tomaram a força de comando no Exército nacional, porque os maiores mártires de 64 foram todos militares – Carlos Lamarca e Carlos Marighella. E muitos militares tiveram coragem de ir contra os integralistas vendidos aos Estados Unidos, pois essa revolução foi claramente armada e orquestrada pelo governo norte-americano, que declarou – há vídeo gravado mostrando isso – uma ação contra Cuba na América Latina. Então, nessa hora, tem que se falar que o exército não fez a revolução de 64. Aliás, não se pode chamar aquilo de revolução, mas, sim, de uma tomada de poder.

Silvio Tendler: 'Forças conservadoras continuam mandando no Brasil'

Da Rede Brasil Atual

Em 1981, o documentarista Silvio Tendler perdeu uma cena do documentário “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, que levou 1,8 milhão de pessoas ao cinema. Nela, o escritor e desenhista Millôr Fernandes declarava que o quarteto Didi, Dedé, Mussum e Zacarias só não era tão engraçado quanto os ministros do então presidente e general João Figueiredo. Três anos depois, mais um filme dele, “Jango”, sobre o ex-presidente João Goulart, também era censurado. Uma das várias vítimas do regime militar no Brasil, o cineasta acaba de gravar um vídeo em defesa de uma manifestação contrária às comemorações realizadas pelos militares esta semana no Rio de Janeiro (RJ).

Durante todo o regime militar, a produção cinematográfica brasileira atravessou diferentes fases. Quando ela foi implantada, em 1964, o Brasil era marcado pelos filmes de Nelson Pereira dos Santos, que sofriam influência do neorrealismo italiano, como “Rio Zona Norte” (1955) e “Rio Quarenta Graus” (1957). Em seguida, surgiu o Cinema Novo, com uma nova estética cinematográfica e que foi instaurado com o filme de episódios “Cinco Vezes Favela”, dirigido por Marcos Faria, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman. 

O cineasta baiano Glauber Rocha também foi bastante crítico ao regime militar em filmes, caso de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963) e “Terra em Transe” (1967), ambos indicados a Palma de Ouro, no Festival de Cannes, na França. Praticamente na mesma época, em 1968, o catarinense Rogério Sganzerla instaurava o “cinema udigrudi” com “O Bandido da Luz Vermelha”. O estilo foi praticado por outros realizadores, como Julio Bressane, e invadiu a década de 1970, dominada também por grandes produções, como “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1976), de Bruno Barreto; e o denominado cinema da Boca do Lixo, do centro de São Paulo. Todos de algum modo incomodaram o regime militar e precisaram de certificado da censura para poderem ser exibidos.

O mesmo aconteceu com os filmes de Silvio Tendler, entre os quais destacam-se a trilogia sobre os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, João Goulart e Tancredo Neves; “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, “Glauber, O Filme – Labirinto do Brasil”, “Utopia e Barbárie” e “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá”, que ganhou o Prêmio de Melhor Filme do Júri Popular no Festival de Brasília de 2006. 

Com tantos títulos no currículo, o cineasta lamenta o fato de que, 27 anos após o término do regime militar, ainda reste tanto a ser superado. “O Brasil é um dos poucos países no mundo onde não houve uma Comissão da Verdade e torturadores e canalhas continuam em liberdade. Cometeram os crimes e ficou por isso mesmo. E muitas das vítimas até hoje não foram encontradas. O Brasil ainda tem que acertar os ponteiros com a sua história. A gente não pode continuar prisioneiro do passado”, explica.

Leia a seguir a entrevista completa com Silvio Tendler.

Por que o senhor resolveu participar da manifestação contra as comemorações do aniversário do golpe?

Em primeiro lugar, estranho seria não participar. Participar é normal e uma coisa lógica para uma militância contra a ditadura. Em segundo lugar, eu acho que a ditadura militar no Brasil foi um atraso de muitos anos para o país, para a cultura e para a política. Eu até hoje combato com todas as forças qualquer tentativa que seja favorável a ela.

Essa manifestação trará resultados?

Terá uma grande mobilização, muito maior do que a esperada. Eu acho que esse movimento pode se considerar já vitorioso.

Ainda é possível encontrar reflexos desse regime militar no Brasil e nós conseguimos superar todos os nossos fantasmas?

Eu acho que a gente superou muito pouco. O Brasil é um dos poucos países no mundo onde não houve uma Comissão da Verdade e torturadores e canalhas continuam em liberdade. Cometeram os crimes e ficou por isso mesmo. E muitas das vítimas até hoje não foram encontradas. O Brasil ainda tem que acertar os ponteiros com a sua história. A gente não pode continuar prisioneiro do passado.

Como foi a relação do senhor com a censura federal e com o regime militar? E o senhor correu riscos de exílio ou de censura?

Eu tive de ficar clandestino numa época, mas consegui escapar, graças a Deus. E tive filmes censurados pela ditadura, como “Jango”, por exemplo. A relação com os censores era a pior possível. Na verdade, a gente teve que encher o saco da ditadura também.

Você acredita que o cinema daquele período foi prejudicado e, de algum modo, projetos inovadores e importantes foram abortados?

Tudo foi prejudicado – cinema, teatro, tudo que era relacionado à arte, tinha de explicar para a censura. Jornais tinham de ser reescritos, piadas refeitas, porque imbecis determinavam o que a gente poderia falar ou não.

O senhor lembra de algum exemplo de censura contigo? 

Eu me lembro que, no filme que eu fiz sobre os Trapalhões, e o Millôr Fernandes dizia que só não achava os Trapalhões tão engraçados quanto o ministério Figueiredo e essa parte foi cortada.

Em função da ditadura, também havia uma autocensura por parte dos artistas? E por que a arte incomodava tanto?

A arte incomodava, porque era a grande força de resistência à ditadura. Enquanto toda a sociedade estava aprisionada e os partidos políticos tinham seus parlamentares cassados, os artistas e os jornalistas foram prejudicados também.

O grosso da população entendia o que estava acontecendo?

A ditadura nunca foi vitoriosa pelo voto. Prova é a eleição de 1974. O MDB fez a maior parte dos senadores do Brasil.

O senhor acredita que as novas gerações sabem exatamente o que foi a ditadura?

As novas gerações sabem pouco, Poderiam saber bem mais. Ainda há forças conservadoras que mandam nesse país e controlam a educação, a informação e a cultura. 

Na saúde, ditadura começou abertura ao setor privado

Da Rede Brasil Atual

Abertura ao setor privado e acusações de irregularidades foram marcas impressas pela ditadura (1964-85) nos anos seguintes ao golpe de Estado contra João Goulart, que em 1º de abril completa 48 anos. Hoje, um em cada quatro brasileiros é cliente de um plano privado de saúde e sobram queixas sobre a má prestação de serviço público. Heranças diretas do regime autoritário.

O ponto pelo qual teve início a mudança da atenção gratuita à paga foi o do atendimento médico previdenciário. Até o golpe, os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) ofereciam nas redes próprias de hospitais o serviço de saúde aos respectivos associados. Em 1967, os IAPs são unificados no Instituto Nacional de Previdência Social, que, sob a argumentação de que não havia como oferecer a prestação adequada a todos os segurados, passa a fazer repasses a entidades privadas. 

Segundo estudo produzido pelo Ministério da Saúde em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, abriu-se aí um “mercado unificado”, "indicando caminhos de favorecimento da privatização de recursos geridos pelo Estado no setor". O tema foi alçado ao centro das atenções naquele mesmo ano por conta da IV Conferência Nacional de Saúde, de pequena participação, e foi consagrado no Plano Nacional de Saúde, logo batizado de Plano Leonel Miranda, referência ao então ministro da área. Miranda propôs a privatização total do sistema de saúde.

“Naquele momento, tudo o que é do Estado é visto como burocrático, lento, de baixa qualidade”, lamenta Sarah Escorel, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. “É uma lógica financeira revestida do que seria um aspecto de modernização. Apresenta-se um cálculo de custo-benefício e argumenta-se que os países avançados, em especial os Estados Unidos, não têm serviço público.”

O que ocorreu foi o INPS custeando cada vez mais as entidades privadas que ofereciam serviços outrora públicos. Naquele momento, conviviam dois sistemas. Um custeado pelo Ministério da Saúde, público e gratuito, e outro bancado pela Previdência, subsidiado ao setor particular. Segundo o estudo lançado em 2007 pelo governo federal, já no final da década de 1960 o que se gastava nesta segunda ponta do serviço superava os investimentos diretos na assistência médica.

Um grande problema apontado por várias pesquisas foi a corrupção. O pagamento aos hospitais privados era feito mediante a emissão de documentos chamados Unidades de Serviço (US). Amígdalas retiradas duas vezes e homens submetidos a partos foram algumas das irregularidades constatadas.

Em outra frente, passou a ser estimulada a medicina de grupo. Os convênios davam às empresas o direito de deixar de contribuir ao INPS e, em troca, ainda se recebia uma quantidade fixa por mês por paciente. Quanto menos se atendia, maior o lucro. 

 “A aceleração do crescimento da atenção médica da Previdência e o esvaziamento da 'saúde pública' levam ao esgotamento do modelo”, assinala o estudo do Ministério da Saúde. Com o fim do “milagre econômico”, na década de 1970, e logo em seguida o começo do processo de distensão política, crescem as correntes que contestam este padrão, o que leva à criação, na Constituição de 1988, do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas os planos de saúde continuam prosperando, em especial na década de 1990, quando chega ao auge a implementação das ideias do Consenso de Washington, que viam no Estado um papel mínimo e no estímulo à competição do mercado uma regra básica. 

“O SUS não tem capacidade instalada nem pessoal para oferecer serviços para 75% da população. Então, o que faz é contratar o pessoal privado. Este é o modelo implementado lá na ditadura. Teve financiamento para as entidades privadas. O dinheiro foi a fundo perdido para o setor privado, consolidando um problema que já existia antes. Não foi destinado ao setor público para que pudesse atender cada vez melhor”, diz Sarah Escorel.

Hoje, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), 47, 6 milhões de brasileiros estão inscritos em planos privados. Destes, 29 milhões estão vinculados a convênios coletivos empresariais. Segundo os últimos dados disponíveis, a receita total do setor em 2010 foi de R$ 74,8 bilhões. 

Desigualdade no sistema educacional brasileiro é herança do período militar

Da Rede Brasil Atual

Infinidade de universidades privadas, licenciatura em menor tempo, grade de disciplinas engessada e o fechamento do ensino superior às classes baixas são termos que soam naturais aos ouvidos habituados ao modelo educacional brasileiro. Este modelo, porém, aos poucos transformado, teve origem na política adotada pela ditadura iniciada com o golpe de 1º de abril de 1964.

Como o apoio ideológico da ditadura era dado por setores da classe média, foi em nome dela que o governo militar trabalhou, principalmente, na perspectiva de políticas de educação. Para a filósofa Marilena Chauí, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, os estratos médios não tinham poder político nem econômico. "Para o governo militar, a classe média só tinha poder ideológico. Então, a sustentação que ela deu fez com que o governo considerasse que precisava mantê-la como apoiadora, e a recompensa foi garantir o diploma universitário para a classe média", argumenta.

Com a adoção do modelo norte-americano por meio da parceira entre o Ministério da Educação do governo Castelo Branco (1964-1967) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), e a aplicação de uma política educacional mais voltada à economia, o ensino no Brasil deixava de ter a finalidade social e passava a ser, exlcusivamente, direcionado à formação profissional de estudantes. Neste período, a transferência do peso do ensino público para o privado começava a se concretizar.

Segundo a professora do departamento de sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Maria José de Rezende, é neste momento da história que os procedimentos adotados caminhavam contra aquilo que havia sido amplamente discutido desde os anos 1930: a criação de uma educação pertinente à necessidade brasileira, com participação direta da sociedade. "A herança mais forte daquele período é a dificudade de se estabelecer o processo de educação como um todo, com caráter inclusivo e de igualdade de oportunidade", defende a professora.

Educação pública x educação privada

Para Marilena Chauí, o desinteresse em investir no ensino superior público, sem verba ou incentivo a laboratórios e bibliotecas, teve como principal motivo a mudança para uma política capitalista que visava, prioritariamente, à formação rápida de mão-de-obra "dócil" para o mercado de trabalho. "Além disso, eles criaram a disciplina de educação moral e cívica, para todos os graus do ensino. Na universidade, havia professores que eram escalados para dar essa matéria, em todos os cursos, nas ciências duras, biológicas e humanas. A universidade que nós conhecemos hoje ainda é a universidade que a ditadura produziu", relembra Chauí.

Entretando, segundo o professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), João Roberto Martins, à época da chegada dos militares ao poder, o número de estudantes matriculados crescia consideravelmente, resultando no que foi chamado de "problemas dos excedente", que representava um número maior de pessoas aprovadas nos vestibulares do que as vagas oferecidas. Diante disso, a pressão popular exercida fez com que o governo incentivasse o crescimento de vagas recorrendo às universidades privadas. 

Martins sublinha que, apesar da aparente ambiguidade em investir no setor particular, o governo militar, à mesma medida, não reduziu os aportes no ensino superior público. "De certa maneira, o regime autoritário achava que precisava das universidades para realizar o que na época passou a se chamar de Projeto Brasil Potência. Então na verdade não faltaram verbas para os institutos e programas de pesquisa. E, apesar de um regime ditatorial, houve sim apoio a pesquisas e uma grande expansão do sistema brasileiro de pós graduação", pontuou.

A tentativa de calar quem dava voz à sociedade

Militar em sala de aula, muitas vezes fazendo o papel do professor, não foi uma cena incomum naquele período. A repressão contra qualquer tipo de pensamento diferente daquele que estava sendo difundido e politizado representava motivo, sem contestação, para censurar no lecionamento de disciplina e para prisões arbitrárias de professores e líderes estudantis.

Marilena Chauí, que presenciou o arriscado convívio entre militares, estudantes e docentes, conta como foi a resistência e o dia dia das universidades naquele período: "Foi uma coisa dramática, lutamos o que pudemos, fizemos a resistência máxima que era possível fazer com o risco que você corria, porque nós éramos vigiados o tempo inteiro. Os jovens hoje não têm ideia do que era o terror que se abatia sobre nós. Você saía de casa para dar aula e não sabia se ia voltar, não sabia se ia ser preso, se ia ser morto, não sabia o que ia acontecer, nem você, nem os alunos, nem os outros colegas".

Memórias de abril e o golpe da informação

Da Rede Brasil Atual

Há 48 anos, quando o Brasil vislumbrava reformas constitucionais necessárias a seu desenvolvimento, os Estados Unidos financiaram e orientaram o golpe militar. E interromperam uma vez mais um projeto nacional proposto em 1930 por Vargas. Os acadêmicos podem construir teses sofisticadas sobre a superioridade dos países nórdicos para explicar o desenvolvimento cultural e econômico da Europa e dos norte-americanos e as dificuldades dos demais povos em acompanhá-los, mas a razão é outra. Com superioridade bélica, desde sempre, impuseram-se como conquistadores do espaço e saqueadores dos bens alheios, os quais lhes permitiram o grande desenvolvimento científico e militar nos séculos 19 e 20 e sua supremacia sobre o resto do mundo.

O golpe de 1964 não se iniciou com a renúncia de Jânio, três anos antes. Podemos ver sua origem mais próxima em 1953. Naquele ano, diante da resistência de Getúlio Vargas, que quis limitar as remessas de lucros e criou a Petrobras e a Eletrobrás para nos dar autonomia energética, a ação “diplomática” dos Estados Unidos cercou o governo. Com o aliciamento de alguns jornalistas e dinheiro vivo distribuído aos grandes barões da imprensa da época, construiu a crise política interna. Entre a lei que criou a Petrobras e a morte de Getúlio, em 24 de agosto, dez meses depois, o Brasil viveu período conturbado igual ao de agosto de 1961 a abril de 1964.

A propósito do projeto de Getúlio, seria importante a tradução e publicação, no Brasil, de um livro no qual essa operação é narrada em detalhes: "The Americanization of Brazil – A Study of US Cold War Diplomacy in The Third World", 1945-1954. Enfim um estudo sobre a diplomacia americana para o Terceiro Mundo em tempos de Guerra Fria. O autor, Gerald K. Haines, é identificado pela editora SR Books como historiador sênior a serviço da CIA, o que lhe confere toda a credibilidade.

Haines mostra como os donos dos grandes jornais da época foram “convencidos” a combater o monopólio estatal, até mesmo com textos produzidos na própria embaixada, no Rio. E lembra a visita ao Brasil do secretário de Estado Edward Miller, com a missão de pressionar o governo brasileiro a abrir a exploração do petróleo às empresas norte-americanas. O presidente da Standard Oil nos Estados Unidos, Eugene Holman, orientou Miller a nos vender a ideia de que, só assim, o Brasil se desenvolveria. O povo brasileiro foi às ruas e obrigou o Congresso a impor o monopólio.

A domesticação dos meios de informação do Brasil começara ainda no governo Dutra. Os americanos usaram as excelentes relações entre os intelectuais e jornalistas e o embaixador Jefferson Caffery, nos meses em que o Brasil decidira por aliar-se aos Estados Unidos na luta contra o nazifascismo, em benefício de sua expansão neocolonialista. A criação da Petrobras levou os ianques ao paroxismo contra Vargas, e os meios de comunicação acompanhavam a histeria americana. A estatal era vista como empresa feita com o amadorismo irresponsável dos ignorantes. A revista Fortune, citada por Haines, disse que a Petrobras “apenas dança um samba com os problemas básicos do petróleo”.

A morte de Vargas não esmoreceu os grupos que tentaram, em 11 de novembro do ano seguinte, impedir a posse de Juscelino, eleito em 3 de outubro. O golpe de Estado foi frustrado pela ação rápida do general Teixeira Lott. Em 1964, a desorganização das forças populares favoreceu a vitória dos norte-americanos, que voltaram a domesticar a imprensa e o Parlamento e manipularam os chefes militares brasileiros.

Os êxitos do governo atual e a nova arregimentação antinacional contra a Petrobras – agora com o pré-sal – devem mobilizar os trabalhadores que não estão dispostos a viver o que já conhecemos. Sabem que a situação internacional tende para a direita, e não podemos repetir apenas que o povo esmagará os golpistas. É necessário não só exercer a vigilância, mas agir, de forma organizada e já, para promover a unidade nacional em defesa do desenvolvimento de nosso país.

Passados 48 anos do golpe contra João Goulart, resta algo de ditadura



Da Rede Brasil Atual

A instalação da Comissão da Verdade, as ações contra agentes do Estado envolvidos em torturas e sequestros, manifestações pró e contra a punição de militares: o Brasil de 2012 não tem as manifestações de massa das nações vizinhas quando se trata de direitos humanos, mas não se pode afirmar que impere o marasmo de outrora. 

Passados 48 anos do golpe contra o presidente constitucional João Goulart, a transição lenta, gradual e segura proposta pelos militares segue o curso do rio, com águas não tão mansas. É bem verdade que o regime autoritário que vigorou durante mais de duas décadas é um ilustre desconhecido para boa parte da população, ou um fato distante, mas quem desconhece os efeitos de uma educação de nível vexatório? Ou a dificuldade em contar com o serviço público de saúde?

A recente movimentação em torno do legado da ditadura ajuda a que o 1º de abril, data em que os militares deixaram a caserna – com apoio de parte da sociedade civil –, sirva à reflexão sobre os rumos do país, da mesma maneira que ocorre no 24 de março argentino. Enquanto saudosos defendem que se vire essa página da história, é razoável propor que, antes de virá-la, possamos lê-la. 

A educação que se recebe atualmente tem, e muito, ligação com aquilo que foi feito lá atrás, nos anos seguintes ao golpe. A filósofa Marilena Chauí, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), considera que o acesso exclusivo ao ensino superior, deixando de fora as classes baixas, foi o prêmio garantido a setores da classe média que formaram um certo esquadrão ideológico do regime. 

A transformação no currículo escolar e a orientação dos cursos universitários a uma formação técnica foram, para a professora, o caminho encontrado para a formação rápida de uma mão de obra “dócil”. "Além disso, eles criaram a disciplina de educação moral e cívica, para todos os graus do ensino. Na universidade, havia professores que eram escalados para dar essa matéria, em todos os cursos, nas ciências duras, biológicas e humanas. A universidade que nós conhecemos hoje ainda é a universidade que a ditadura produziu", relembra.

Nada mais exemplar neste sentido que a atual situação da USP, outrora de Chauí, Antonio Cândido, Aziz Ab'Saber, e que hoje tem um reitor que se vale de um Estatuto anacrônico, aprovado há 40 anos, para impor dificuldades à circulação do livre pensamento, tão caro ao ensino superior. João Grandino Rodas, persona non grata na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, transformou a Polícia Militar em frequentadora do campus, com o acúmulo de episódios de abuso de autoridade e de repressões gratuitas. 

Por falar em gratuita, na saúde o regime abriu caminho ao ingresso das empresas privadas e criaram-se novas formas de mau uso do dinheiro público. A unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) foi a maneira de dizer que o serviço, até então prestado pelos hospitais ligados a essas entidades, não tinha mais condições de ser ofertado a todos os segurados. Era necessário que o Estado repassasse recursos ao setor particular, que passaria a cuidar da administração das unidades de saúde. 

“Naquele momento, tudo o que é do Estado é visto como burocrático, lento, de baixa qualidade”, lamenta Sarah Escorel, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “É uma lógica financeira revestida do que seria um aspecto de modernização. Apresenta-se um cálculo de custo-benefício e argumenta-se que os países avançados, em especial os Estados Unidos, não têm serviço público.”

E o que dizer das transformações no setor de cultura? O golpe dá cabo, de imediato, de uma série de iniciativas populares no teatro, no cinema, na literatura. É difícil mensurar aquilo que foi perdido, o que jamais foi retomado e o que deixou de ocorrer em termos de inovação e de difusão de novas ideias. Para o cineasta Silvio Tendler, acompanhado de perto pela censura, a arte incomodou muito o regime porque era a grande forma de contestação. “Jornais tinham de ser reescritos, piadas refeitas, porque imbecis determinavam o que a gente poderia falar ou não”, diz o diretor de Jango, que lamenta o estágio atual do Brasil na tarefa de passar a limpo sua história. “O Brasil é um dos poucos países no mundo onde não houve uma Comissão da Verdade e torturadores e canalhas continuam em liberdade. Cometeram os crimes e ficou por isso mesmo.”

Até agora. Crescem as ações do Ministério Público Federal (MPF) contestando a validade da leitura proferida em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei de Anistia, aprovada em 1979, impede a punição penal de torturadores e sequestradores com base em um suposto processo de “reconciliação nacional”. Tomando como referência a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, também em 2010, procuradores têm lembrado que os corpos não apareceram – ou seja, os crimes ainda estão por aí. 

O resumo da ópera está nas palavras de Aldo Corrêa, que perdeu irmão, irmã e cunhada entre 1973 e 1974 no episódio conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Elmo Corrêa, Telma Regina Cordeira Corrêa e Maria Célia Corrêa são três das pessoas apontadas pelo MPF no Pará como vítimas do coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, responsável pela repressão aos grupos de resistência à ditadura. “Não sei o que passa na cabeça deles de alegar que a Lei de Anistia considerou os desaparecidos como mortos. Isso é para eles. Para nós, familiares, não estão mortos. Se estão mortos, cadê o corpo? Como pode chegar a essa conclusão por mim?”, questiona.

No momento em que este texto é publicado, 237 repressores já foram condenados pelo Judiciário argentino, número que pode aumentar a qualquer momento porque há 778 processados. No Brasil, a esperança de abrir caminho para a punição reside novamente no STF, que tem nas mãos recurso da OAB contra a decisão tomada em 2010. O caso deveria ter ido a julgamento ontem (29), mas não foi. Aguarda-se agora nova data. Para quem quer que continue tudo como agora, é animador o resultado de levantamento divulgado em fevereiro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Entre 924 entrevistados, 74,8% desconhecem a Lei de Anistia. Se a educação não tivesse sido desmontada durante a ditadura, quem sabe seria mais fácil lê-la.

A manifestação dos caras-pintadas diante do Clube Militar


Por Hildegard Angel

Foi um acaso. Eu passava hoje pela Rio Branco, prestes a pegar o Aterro, quando ouvi gritos e vi uma aglomeração do lado esquerdo da avenida. Pedi ao motorista para diminuir a marcha e percebi que eram os jovens estudantes caras-pintadas manifestando-se diante do Clube Militar, onde acontecia a anunciada reunião dos militares de pijama celebrando o "31 de Março" e contra a Comissão da Verdade.

Só vi jovens, meninos e meninas, empunhando cartazes em preto e branco, alguns deles com fotos de meu irmão e de minha cunhada. Pedi ao motorista para parar o carro e desci. Eu vinha de um almoço no Clube de Engenharia. Para isso, fui pela manhã ao cabeleireiro, arrumei-me,  coloquei joias, um vestido elegante, uma bolsa combinando com o rosa da estampa, sapatos prateados. Estava o que se espera de uma colunista social.

A situação era tensa. As crianças, emboladas, berrando palavras de ordem e bordões contra a ditadura e a favor da Comissão da Verdade. Frases como "Cadeia Já, Cadeia Já, a quem torturou na ditadura militar". Faces jovens, muito jovens, imberbes até. Nomes de desaparecidos pintados em alguns rostos e até nas roupas. E eles num entusiasmo, num ímpeto, num sentimento. Como aquilo me tocou! Manifestantes mais velhos com eles, eram poucos. Umas senhoras de bermudas, corajosas militantes. Alguns senhores de manga de camisa. Mas a grande maioria, a entusiasmada maioria, a massa humana, era a garotada. Que belo!

Eram nossos jovens patriotas clamando pela abertura dos arquivos militares, exigindo com seu jeito sem modos, sem luvas de pelica nem punhos de renda e sem vosmecê, que o Brasil tenha a dignidade de dar às famílias dos torturados e mortos ao menos a satisfação de saberem como, de que forma, onde e por quem foram trucidados, torturados e mortos seus entes amados. Pelo menos isso. Não é pedir muito, será que é?

Quando vemos, hoje, crianças brasileiras que somem, se evaporam e jamais são recuperadas, crianças que inspiram folhetins e novelas, como a que esta semana entrou no ar, vendidas num lixão e escravizadas, nós sabemos que elas jamais serão encontradas, pois nunca serão procuradas. Pois o jogo é esse. É esta a nossa tradição. Semente plantada lá atrás, desde 1964 - e ainda há quem queira comemorar a data! A semente da impunidade, do esquecimento, do pouco caso com a vida humana neste país.

E nossos quixotinhos destemidos e desaforados ali diante do prédio do Clube Militar.  "Assassino!", "assassino!", "torturador!", gritava o garotinho louro de cabelos longos anelados e óculos de aro redondo, a quem eu dava uns 16 anos, seguido pela menina de cabelos castanhos e diadema, e mais outra e mais outro, num coro que logo virava um estrondo de vozes, um trovão. Era mais um militar de cabeça branca e terno ajustado na silhueta, magra sempre, que tentava abrir passagem naquele corredor humano enfurecido e era recebido com gritos e desacatos. Uma recepção com raiva, rancor, fúria, ressentimento. Até cuspe eu vi, no ombro de um terno príncipe de Gales.

Magros, ainda bem, esses velhos militares, pois cabiam todos no abraço daqueles PMs reforçados e vestidos com colete à prova de balas, que lhes cingiam as pernas com os braços, forçando a passagem. E assim eles conseguiram entrar, hoje, um por um, para a reunião em seu Clube Militar: carregados no colo dos PMs.

Os cartazes com os rostos eram sacudidos. À menção de cada nome de desaparecido ao alto-falante, a multidão berrava: "Presente!". Havia tinta vermelha cobrindo todo o piso de pedras portuguesas diante da portaria do edifício. O sangue dos mortos ali lembrados. Tremulavam bandeiras de partidos políticos e de não sei o quê mais, porém isso não me importava. Eu estava muito emocionada. Fiquei à parte da multidão. Recuada, num degrau de uma loja de câmbio ao lado da portaria do prédio. A polícia e os seguranças do Clube evacuaram o local, retiraram todo mundo. Fotógrafos e cinegrafistas foram mandados para a entrada do "corredor",  manifestantes para o lado de lá do cordão de isolamento. E ninguém me via. Parecia que eu era invisível. Fiquei ali, absolutamente sozinha,  testemunhando  tudo  aquilo, bem uns 20 minutos, com eles passando pra lá e pra cá, carregando os generais, empurrando a aglomeração, sem perceberem a minha presença. Mistério.

Até que fui denunciada pelas lágrimas. Uma senhora me reconheceu, jogou um beijo. E mais outra. Pessoas sorriram para mim com simpatia. Percebi que eu representava ali as famílias daqueles mortos e estava sendo reverenciada por causa deles. Emocionei-me ainda mais. Então e enfim os PMs me viram. Eu, que estava todo o tempo praticamente colada neles! Um me perguntou se não era melhor eu sair dali, pois era perigoso. Insisti em ficar, mesmo com perigo e tudo. E ele, gentil, quando viu que não conseguiria me demover: "A senhora quer um copo d'água?". Na mesma hora o copo d'água veio. O segurança do Clube ofereceu: "A senhora não prefere ficar na portaria, lá dentro? ". "Ah, não, meu senhor. Lá dentro não. Prefiro a calçada". E nela fiquei, sobre o degrau recuado, ora assistente, ora manifestante fazendo coro, cumprindo meu papel de testemunha, de participante e de Angel. Vendo nossos quixotinhos empunharem, como lanças, apenas a sua voz, contra as pás lancinantes dos moinhos do passado, que cortaram as carnes de uma geração de idealistas.

A manifestação havia sido anunciada. Porém, eu estava nela por acaso. Um feliz e divino acaso. E aonde estavam naquela hora os remanescentes daquela luta de antigamente? Aqueles que sobreviveram àquelas fotos ampliadas em PB? Em seus gabinetes? Em seus aviões? Em suas comissões e congressos e redações?  Será esta a lição que nos impõe a História: delegar sempre a realização dos "sonhos impossíveis" ao destemor idealista dos mais jovens?


Abaixo imagens da manifestação e seus desdobramentos


quinta-feira, 29 de março de 2012

PMs do Rio e de SP matam mais que países com pena de morte

Raphael Prado
De Nova Iorque, especial para Terra Magazine

Números divulgados nesta terça-feira (27) pela Anistia Internacional mostram que 20 países em todo o planeta executaram 676 pessoas em 2011. O dado, embora ainda distante do sonhado "mundo livre da pena de morte" pregado pela organização, mostra uma melhora na comparação com anos anteriores. Em 2002, eram 31 países os que praticavam a pena capital a prisioneiros. Segundo a Anistia, também restam 18.750 pessoas na fila da pena de morte.

No Brasil, ao contrário dos países que a Anistia Internacional acompanha, a pena capital não existe legalmente. Mas agentes do Estado são responsáveis por altas taxas de letalidade supostamente em confrontos com criminosos, os chamados "auto de resistência".

Em 2011, no Rio de Janeiro, 524 pessoas foram mortas pela Polícia Militar em todo o estado, segundo dados do Instituto de Segurança Pública, do governo fluminense. Em São Paulo, no mesmo período, foram 437 mortes, segundo a Secretaria de Segurança Pública paulista. Somadas, as estatísticas revelam que, nos dois estados mais populosos do país, 961 mortes foram cometidas por agentes do Estado em 2011 - um número 42,16% maior do que as vítimas da pena de morte em todos os países pesquisados pela Anistia Internacional. A organização não tem acesso aos números da China, que se nega a passar os dados e, segundo a instituição, podem dobrar a quantidade de execuções e, portanto, possivelmente atingir o número de mortes pelas PMs do Rio e São Paulo, apenas dois estados brasileiros.

Tropa violenta

No primeiro semestre de 2011, uma em cada cinco pessoas assassinadas na capital paulista foi morta pela PM. Dos 629 homicídios cometidos na capital, 128 registros foram feitos como "pessoas mortas em confrontos com a Polícia Militar em serviço". Esse tipo de ocorrência é um indicativo de revides da PM a ataques de criminosos ou enfrentamento em ação policial.

Em todo o Estado de São Paulo, em 2011, a Secretaria de Segurança Pública registrou 4.396 vítimas de homicídios dolosos. A PM matou outras 437 pessoas - o que dá uma proporção de um morto pela PM para cada 11,05 vítimas de assassinato no Estado. Esse índice faz da PM de São Paulo uma das tropas mais violentas do mundo.

Dados de 2009 do Departamento de Justiça dos Estados Unidos - os últimos disponíveis - indicam que a polícia americana foi responsável por 406 das 14.042 mortes registradas naquele ano no país, o que dá uma taxa de letalidade da polícia de um assassinato para cada 34,58 ocorridos no país.

"Em São Paulo, é uma pena de morte feita à luz do dia", critica o deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa paulista. "Esta prática está completamente institucionalizada. Ela faz parte de uma rotina. Essa resistência seguida de morte nem é averiguada, é tida como cotidiano", afirma Diogo.

Em nota, a Polícia Militar de São Paulo respondeu que "não podemos comparar execuções legais com confrontos policiais. Esclarecemos que na última década os números de homicídios em SP decresceram em mais de 80%."

'Criminalização da pobreza'

No Rio de Janeiro, a Secretaria de Segurança Pública registrou 4.280 homicídios dolosos em 2011. Os 534 autos de resistência revelam uma taxa de letalidade da PM fluminense de uma morte para cada 9,17 vítimas de assassinato no Estado.

Na Argentina, em 2007 - também os últimos dados disponíveis -, de acordo com o Centro de Estudos Legais e Sociais, a região metropolitana de Buenos Aires (que tinha, à época, 12 milhões de habitantes) registrou 79 casos de pessoas mortas em confronto com a polícia. Neste mesmo 2007, só na capital paulista - excluídas as cidades da Grande São Paulo -, a PM registrou 203 mortes "em confronto". Moram na cidade de São Paulo 11 milhões de habitantes.

"É um número inaceitável, mesmo que alguns casos tenham sido em confronto", defende o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio. "O perfil dessas vítimas, de qualquer cidade brasileira, não só do Rio ou de São Paulo, é o mesmo: são jovens, pobres, negros, baixíssima escolaridade, moradores de favela e periferia", afirma.

Para o deputado, a política de segurança pública no Brasil está voltada para um processo de "criminalização da pobreza". "Quando fizemos a transição da ditadura para a democracia, a política de segurança pública continuou calcada na eliminação do inimigo", afirma. "O inimigo da ditadura era o comunista, o universitário, o jornalista que era preso, torturado e morto. Hoje a lógica continua sendo do enfrentamento do inimigo. Só que hoje o inimigo é o pobre, é quem sobrou da sociedade de mercado. Continuamos tendo uma política de segurança calcada na ideia da guerra", explica o deputado.

A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro informa que o número de ocorrências registradas como "auto de resistência" tem caído nos últimos anos - de 1.048 casos em 2009, para 855 casos em 2010 e 524 em 2011. Segundo a SSP, a redução se deve ao Programa de Metas e Acompanhamento de Resultados estabelecido pela pasta. "Vale ressaltar que o avanço do Programa de Metas a cada semestre aumenta o desafio das polícias", diz, em nota, a secretaria estadual.

Acrescenta ainda a Secretaria: "O governo do Estado, reconhecendo a relevância do Programa de Metas para a melhoria da segurança pública, decidiu que os policiais lotados há mais de 6 meses nas áreas que bateram as metas deveriam receber gratificações pagas pelo cumprimento dos resultados. Desta forma, todos os policiais de uma área que bateram a meta e ainda tiveram a maior redução entre todas ganham R$ 3 mil ao fim do semestre. O segundo colocado, nos mesmos critérios, tem direito a R$ 2 mil. O terceiro colocado, a R$ 1.500. E todos os policiais, cujos batalhões e delegacias apenas alcançaram suas metas, têm direito a uma gratificação de R$ 1 mil".

quarta-feira, 28 de março de 2012

Uma alternativa ao caos: por um projeto de cidade popular

Medalha Chico Mendes de Resistência 2012

Silvio Tendler convoca os brasileiros para ato contra a comemoração do golpe militar de 1964



Dia 29/03/2012 (quinta feira)
Local: Em frente ao Clube Militar, na Cinelândia.
Av. Rio Branco, 251 – Rio de Janeiro

Líder do MST é morto a tiros em Pernambuco

Um líder do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Pernambuco foi assassinado com dois tiros, na última sexta-feira, quando ia de um acampamento para outro no município de Jataúba (223 km de Recife).

A Polícia Civil disse que Antônio Tiningo, que liderava um acampamento de sem-terra na fazenda Ramada, foi morto em uma emboscada numa estrada de terra que leva a outro acampamento, na fazenda Açucena.

Ainda de acordo com a polícia, dois homens escondidos num matagal deram dois tiros no sem-terra, que estava numa moto. A mulher de Tiningo estava com ele, mas não foi baleada. A idade do morto --que foi enterrado no domingo-- não foi informada.

O MST afirmou que um empresário conhecido como Brecha Maia é o mandante do crime. O movimento diz que ele comprou a fazenda Ramada em outubro do ano passado e expulsou as 47 famílias que tinham invadido a terra havia três anos.

Os agricultores voltaram em fevereiro e, segundo os sem-terra, a partir daí começaram as ameaças de morte ao líder do grupo. "Ele [o empresário] ameaçou, mandou recados. A morte de Tiningo foi um crime anunciado", disse Edilson Barbosa, da direção estadual do MST.

A polícia afirmou que não recebeu a denúncia envolvendo o empresário e não quis dar detalhes da investigação.

O MST solicitou à Secretaria de Defesa Social de Pernambuco um delegado especial para apurar o crime.

Documento para Rio+20 oficial ignora direitos humanos

por Monike Mar

Na última semana, a antropóloga Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), saiu de Brasília em direção a Nova York. Lá, foi direto para o quartel-general da Organização das Nações Unidas (ONU), onde só é possível entrar após um processo burocrático de raios-x e vistoria de crachás. “A cena é um pouco deprimente”, afirma ela, que não vê necessidade do rito por encontrar os mesmos rostos, conhecidos há décadas. Iara é veterana: acompanha as conferências da ONU desde 1992.

Representante da Rede Brasileira sobre Instituições Financeiras Multilaterais (Rede Brasil) no Grupo de Articulação da Cúpula dos Povos na Rio+20, Iara também vai participar das reuniões da conferência oficial. Por isso, vem acompanhando de perto todo o processo da ONU na formulação de propostas e documentos para o evento que o Rio de Janeiro recebe em junho.

“Estávamos todos e todas por lá: faces conhecidas, cabelos grisalhos e alguns com clara expressão de desânimo. Outros, mais jovens, mais animados, querendo conhecer o processo”, conta a antropóloga, que se enquadra no primeiro grupo. Não pela cor dos cabelos, mas pela aparente decepção com o rumo que a Rio+20 parece tomar a partir de agora.

Durante os encontros realizados entre os últimos dias 19 e 23, uma série de questões-chave para o avanço do desenvolvimento sustentável no planeta foram deletadas das páginas do rascunho do documento oficial.

“Todo o conteúdo que de alguma forma fazia referência aos direitos humanos foi apagado. O objetivo dos países em desenvolvimento é resumir o documento o máximo possível, torná-lo mais generalizante. Para mim, fica bem claro que não querem se comprometer com nada”, protesta. “Todas as nossas conquistas obtidas na Rio 92 estão em retrocesso”.

A borracha do Rascunho Um

O novo documento, a ser formalizado nesta terça-feira (27/3), será chamado de Rascunho Um, já que dará lugar ao Rascunho Zero (‘Zero Draft’) – primeiro esboço das propostas que seriam levadas para o evento. Com vinte páginas, o primeiro rascunho já foi alvo de críticas intensas da própria Iara por seu conteúdo superficial e controverso. Agora, segundo ela, o problema pode ser ainda maior, caso a ONU atenda às sugestões dos EUA quanto à redução do documento definitivo para apenas 4 páginas.

Contudo, com a intervenção dos países-membros da ONU, o novo rascunho já passa das 150 páginas. O motivo não é nobre. Iara explica que o documento está repleto de temas em desacordo. “Quando um representante de um país não concorda com algum tópico, ele pode incluir um colchete. É isso que o texto mais tem neste momento. Ou seja, há um baixo nível de confiança e consenso entre os representantes”.

Além dos EUA, outros países, como França, Canadá e Austrália, negam preceitos que reconhecem o acesso a recursos naturais como um direito humano. Eles defendem a exclusão sumária de trechos sobre segurança alimentar, erradicação da pobreza e princípios básicos de responsabilidade dos países com o desenvolvimento sustentável. Esses últimos são os que mais comprometem a credibilidade da Rio+20.

“Por exemplo, foram excluídos os princípios do país poluidor-pagador, da precaução ambiental e o da responsabilidade comum, mas diferenciada”, explica Iara. “Sem esses princípios, todas as metas de desenvolvimento sustentável serão jogadas no lixo. Será a maior contradição da Rio+20”.

Segundo o princípio do país poluidor-pagador, o país responsável por danos ambientais deve arcar com os custos da reparação. Já pelo princípio da precaução, uma ação deve ser evitada em caso de incerteza quanto ao impacto do uso de uma técnica ou produto – a usina de Belo Monte, por exemplo, não estaria sendo construída se esse princípio fosse respeitado. Por fim, o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas reconhece que os países desenvolvidos são os maiores responsáveis, historicamente, pela degradação do meio ambiente.

“Os manipuladores do novo documento parecem não enxergar nenhuma relação entre homem e meio ambiente”, acrescenta Iara. “Essa (falta de) visão fica ainda mais clara quando o assunto refere-se aos povos fragilizados pelo não acesso à propriedade, a alimentos ou até mesmo à água.”

Ítens excluídos

Se para você parece óbvio que os direitos à “alimentação e nutrição adequadas”, “água potável e saneamento” devem ser assegurados para todo cidadão, saiba que os países à frente da redação do novo rascunho não pensam o mesmo. A segurança alimentar foi um dos temas que mais sofreu alterações. A situação se torna ainda mais alarmante quando os países demonstram não se preocupar com as razões da crise de alimentos: foi excluído do documento o item que previa a “regulamentação dos mercados financeiros e de commodities para enfrentar a volatilidade dos preços”.

O parágrafo que garantia o direito de mulheres, povos indígenas e outros grupos vulneráveis ao acesso à terra também foi apagado. O mesmo aconteceu ao trecho que assegurava atenção especial dos governos aos “desafios enfrentados pelos pequenos produtores, mulheres e jovens, inclusive sua participação nos processos decisórios”.

A manipulação do novo texto não parou por aí: em toda a sua extensão, a palavra “pobreza” tem dado lugar ao termo “pobreza extrema”, para reduzir ainda mais o campo de atuação das políticas públicas nos próximos anos.

Vinte anos de retrocesso

Há vinte anos, Iara se deparava com uma situação diferente. Ao contrário do que está acontecendo agora, os direitos humanos pautaram os debates sobre o desenvolvimento sustentável durante a Rio 92. Não à toa, Iara lembra da época atribuindo um certo brilho às palavras que usa para descrevâ-la. “Vivíamos um momento importante. Estávamos inaugurando uma nova década na luta por direitos. Havia uma excitação, muita ilusão e muita esperança. Estabelecíamos princípios que armavam um marco jurídico internacional da maior relevância para aqueles que acreditavam nos direitos humanos”.

Agora, Iara não quer ver o que era sólido se desmanchar. Por isso, faz um alerta. “Estamos correndo o sério risco de perder todas as conquistas dos direitos humanos e ver o marco jurídico internacional ser destruído, para poder se adequar a uma outra visão mais conservadora, desumana, predatória sobre os recursos naturais e sobre os que são, nessa visão excludente, menos humanos – mulheres, pobres, negros, indígenas, homossexuais, deficientes e quem mais lute por afirmação dos direitos”, conclui.

Carta à ONU

No último domingo, dia 25, organizações de diversos países redigiram uma carta em protesto aos cortes do conteúdo que direcionava os debates a questões de direitos humanos. O manifesto será enviado ao Secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, ao secretário-executivo da Rio+20, Sha Zukang, e a todos os representantes dos estados-membros das Nações Unidas. Para ler a carta, clique aqui.