Por Edson Teles.
No dia 31 de março de 1964 foi instaurado no país uma ditadura militar, a qual prendeu e torturou mais de 50 mil pessoas, processou em torno de 7 mil opositores e assassinou e desapareceu com cerca de 400 militantes da resistência. Além dos dados referentes à repressão política institucionalizada, podemos dizer que o Estado brasileiro acentuou as diferenças sociais, promovendo governos favoráveis aos grandes latifúndios, hoje agroindústria, sistema financeiro e outros segmentos das oligarquias que há muito governam o país.
Em 1985, por meio de eleição indireta realizada no Colégio Eleitoral foi eleito o candidato da oposição Tancredo Neves (o candidato da ditadura era Paulo Maluf). Entretanto, tomou posse José Sarney, o até então líder do regime militar. Este tipo de transição política da ditadura para a democracia expôs o modelo escolhido por nossa oligarquia política e econômica. A abertura deveria ser gradual, controlada e sem o menor risco de apuração e julgamento do passado de violência. A ditadura chegava ao fim, porém algo de autoritário, legado dos mais de 20 anos de estado de exceção, permaneceria em nosso cotidiano nacional.
Há uma série de sobras e restos da ditadura; alguns aspectos são mais explícitos, outros menos. Entre as principais heranças, duas são gravíssimas: uma delas seria determinada estrutura de poder na qual o povo, principal elemento de uma democracia, encontra-se excluído ou em situação passiva em relação à ação política; outra herança seria uma cultura da impunidade que inclui a prática cotidiana da tortura, entre outras violências, como modo de ação das instituições de segurança pública.
Levando-se em conta que estes são problemas crônicos da sociedade brasileira (o povo encontra-se alijado das decisões do poder desde a origem da República e a tortura é prática secular no Brasil), mas que ganharam em intensidade e institucionalidade durante a ditadura militar, é preciso que o país, de fato, siga os passos indicados pela justiça de transição, tal como propõem os órgãos de direito internacional, como a ONU e a OEA e apure toda a verdade sobre os anos de repressão.
Os governantes da democracia, sendo que os três principais foram vítimas da ditadura (FHC, Lula e Dilma), têm se caracterizado pela ação conciliatória ou ambígua quanto aos crimes e aos criminosos do passado. O atual governo brasileiro possui alguns membros que declaram abertamente sua posição favorável à punição dos torturadores. Ao mesmo tempo, o Estado entra com medidas judiciais, através da Advocacia Geral da União, contra a reinterpretação da Lei da Anistia ou protelam as determinações judiciais, em última instância, que obrigam a localização dos corpos de desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia, bem como a apuração das circunstâncias de suas mortes. Por este motivo, o Estado brasileiro foi condenado, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), a apurar as circunstâncias dos assassinatos e tortura de militantes da Guerrilha do Araguaia (1972-1975), localizar os corpos desaparecidos e punir os responsáveis por tais crimes.
Tal possibilidade foi negada pela recente determinação do Supremo Tribunal Federal de considerar a Lei de Anistia de 1979 como fruto de um acordo legítimo entre oposição, governo militar e sociedade. Não podemos nos esquecer de que na época o Congresso Nacional era formado, em boa parte, por parlamentares “biônicos” (nomeados pela ditadura, sem a legitimação do voto popular). Poucos meses antes vários políticos haviam sido cassados; em 1977, o Congresso foi fechado e a lei eleitoral e de direitos políticos modificadas por decreto do presidente-general de plantão. A censura vigorava, pessoas estavam desaparecidas ou banidas do país e a tortura era a política de governo para os opositores. Como pode, hoje, o STF declarar que o acordo de então foi legítimo?
A memória dos anos de repressão política, por terem sido silenciados nos debates da transição, delimita um lugar inaugural de determinada política e cria valores herdados na cultura que permanecem, tanto objetivamente, quanto subjetivamente, subtraídos dos cálculos da razão política. É fundamental, para ultrapassarmos a impunidade e os atos de violência de hoje, que façamos o julgamento e a punição dos torturadores de ontem. Se alguns países latino-americanos dedicam-se à criação de novos investimentos em direitos humanos, o Brasil se mantém como modelo de impunidade e não tem feito, sequer, a política da verdade histórica.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010).
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