Por Marcelo Semer
Entre as várias discussões que a greve das PMs vai levantar, uma delas certamente será a desmilitarização da segurança.
Apesar de décadas acostumados ao trato e às posturas militares, em algum momento voltaremos à questão central: o policiamento é essencialmente uma atividade de natureza civil.
Nada há de militar no ato de policiar, seja ele ostensivo ou investigatório.
A dinâmica militar tem como princípio a defesa bélica do país, diante de seus inimigos, em estratégias de guerra e defesa territorial. Não a de proteger direitos de cidadãos violados ou ameaçados por conterrâneos.
Essa lógica enviesada que os anos de ditadura nos fizeram crer como natural já não resiste sequer a argumentos circunstanciais.
Muito além do controle estrito que se poderia esperar de uma tropa forjada na disciplina, as Polícias Militares têm demonstrado um alto índice de violência. Chegam a ser responsáveis por quase 1/5 dos homicídios no país, sem contar a proliferação de corpos encobertos por autos de resistência.
Como exemplos dos grandes centros têm nos mostrado, nem a hierarquia militar nem a formação em quartéis impedem a promiscuidade de vários de seus agentes com o crime organizado.
E apesar de todas as proibições legais e constitucionais, fundadas justamente no caráter militar, os PMs se mostraram muito mais articulados sindicalmente do que outros funcionários sobre os quais não recaem tantas vedações.
Do quê, afinal, o militarismo da polícia tem nos salvado?
A formação militar é pouco permeável às aparas cotidianas de uma democracia, como manifestações de movimentos estudantis ou sociais.
Grupos de extermínio ou milícias têm nascido dentro de seus quadros, sem que os comandos, por mais rigorosos que sejam, consigam evitar. A ideia de criação de pequenos exércitos locais, que é base da noção de polícia militar, mais estimula do que repele o nascimento de tais esquadrões.
A incipiência dos salários, por sua vez, jogou parcelas significativas da carreira na prática de "bicos" no setor privado, produzindo uma contraditória terceirização da segurança levada a efeito pelos próprios agentes do Estado.
Por fim, a divisão das polícias só alimenta conflitos internos, com corporativismos que não raro se enfrentam.
O saudoso Mário Covas, que estava longe de ser um revolucionário ou anarquista, começou seu governo em São Paulo propondo justamente a integração das polícias como primeiro passo para a unificação.
Com o tempo, todavia, o tema foi alojado entre aqueles entulhos autoritários que mandamos para debaixo do tapete.
A militarização da polícia foi levada ao paroxismo com a criação de uma justiça própria para julgar policiais e bombeiros. Depois do episódio do Carandiru, a competência para apurar homicídios por eles praticados, por motivos óbvios, foi excluída da Justiça Militar.
A desmilitarização não resolveria todos os problemas.
Continuaria sendo inaceitável, dentro de um estado democrático, qualquer tipo de manifestação armada, por mais justas que sejam suas reivindicações.
Mas, além de coerente com a democracia, ela impediria que essa articulação nacional, que vem se revelando desde a greve da Bahia, desemboque em uma delicada questão militar, como outras que já embaralharam nossa história política.
Os experientes e preparados policiais, que formam a maioria do corpo, certamente saberão exercer suas funções sob a disciplina civil.
Continua sendo um paradoxo, todavia, que os PMs sejam tratados como essenciais apenas nos deveres, não na remuneração, caso de outros profissionais como os área da saúde e da educação.
Pouco a pouco os servidores compreenderão a necessidade de concentrar esforços na discussão dos orçamentos, onde se elegem as prioridades e se reparte o bolo.
Quem sabe nessa hora possamos discutir ao mesmo tempo dos reajustes, o custo das emendas parlamentares ou o dinheiro desperdiçado na comunicação, quando pagamos aos governos para que façam propaganda para nós mesmos.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia.
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