A segurança pública e a violência institucional é uma área de atuação privilegiada no trabalho cotidiano de pesquisa, documentação e promoção dos direitos humanos da Justiça Global em diversos estados do Brasil. Nos últimos anos, realizamos nossos posicionamentos políticos através de inúmeras notas públicas, informes, relatórios e publicações sobre o tema. Entre eles podemos destacar o Relatório Rio – Violência policial e Insegurança pública (2004); Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro (2008); Criminalização da pobreza – Um relatório sobre as causas econômicas, sociais e culturais da tortura e outras formas de violência no Brasil (2009) e a Cartilha popular do Santa Marta: Abordagem policial (2010). Também participamos da construção do Encontro Por outra Segurança Pública (ENPOSP), que aconteceu paralelamente a realização da Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG).
Esse conjunto de ações políticas e publicações demonstram que a Justiça Global e outras organizações de direitos humanos não se esqueceram desse tema e têm se posicionado publicamente sobre as políticas de segurança pública vigentes no país, visando criar uma consistente política pública de segurança. Apesar da mobilização de atores sociais por uma reforma abrangente na área, pouca coisa mudou no cenário brasileiro. A proposta do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), com integração nacional e valorização do profissional, foi derrotada no início do primeiro governo Lula. Já o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), alardeado como novidade no final do segundo mandato, não resistiu e está à míngua no atual governo Dilma. Ou seja, as duas principais políticas para o setor foram sistematicamente desmontadas. Parece que existe um forte lobby que busca deixar tudo do jeito que está. Pior para a sociedade e para os direitos humanos.
As recentes reivindicações salariais, através de ações grevistas (funcionando como pressão pela aprovação da PEC 300) de policiais militares e bombeiros em diversos estados do país, demonstram que algo não anda bem na segurança pública brasileira. Para além da reivindicação salarial e valorização do trabalho, existem elementos nessa “crise da segurança pública” que apontam para um esgotamento do modelo em curso, que é hierarquizado, disfuncional e foi consolidado no período da ditadura civil-militar (1964-1985).
No modelo atual temos duas polícias que funcionam com o ciclo incompleto. Isso quer dizer, resumidamente, que a Polícia Militar atua no policiamento ostensivo (reativo) de acordo com ocorrências aleatórias. Já a Polícia Civil (judiciária) realiza a segunda parte do ciclo, que é a investigação criminal, e apresenta os fatos e o conjunto de provas para que o Ministério Público denuncie ou arquive e depois a justiça comum julgue. Dessa forma, a Polícia Civil integra o sistema de justiça criminal. Essa dicotomia entre as polícias produz concorrência entre elas e preserva um arranjo político pouco eficaz.
Certo é que o problema na área de segurança pública tem sido negligenciado por sucessivos governos, e agora ele dá sinais que o organismo já não consegue viver harmonicamente com os arranjos institucionais que se amontoaram. Temos uma polícia violenta, responsável por cerca de 1/5 dos homicídios nacionais e que está envolvida com grupos de extermínio. Outro dado assustador é a crescente participação de agentes públicos em grupos armados que fazem controle econômico de territórios, conhecidos popularmente como milícias. Do ponto de vista institucional, vemos uma forte hierarquização na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros que não lembra em nada as funções civis da segurança pública. Esse formato cria instituições pouco propensas à democracia interna e externa e que tratam os movimentos sociais e defensores de direitos humanos como inimigos a serem combatidos. Estamos falando, precisamente, do processo de militarização da segurança pública e da sociedade em que o BOPE é o paradigma máximo.
A pauta da desmilitarização da segurança pública e a reforma profunda da atividade policial foram sistematicamente boicotadas por esse governo e os anteriores em nome da continuidade de um modelo, que apesar de aberrante, tinha se cristalizado como natural e inamovível. As manifestações das organizações da sociedade civil, que detectavam os graves problemas sociais e as violações de direitos humanos perpetuadas, não ganharam eco no aparelho de Estado, apesar do extermínio em curso da juventude negra do país.
Seguimos com uma institucionalidade na PM que não responde às demandas atuais por segurança pública e está conformada para manter os policiais e a própria sociedade sob controle. A utilização do código militar e o impedimento de sindicalização dos policiais militares em organização de caráter civil é a mostra da força das ideias que estão insistentemente fora de lugar. No período de democratização permaneceu e se consolidou um formato do regime ditatorial. O efeito disso é que os policiais militares (pouco afeitos com as atividades civis) a título de greve fazem, por vezes, aquilo que aprenderam nas casernas. Colocam-se pelo poder das armas acima dos interesses da sociedade, como se viu há pouco no movimento paredista da Bahia.
Por tudo isso, é possível afirmar que a atual crise na segurança pública não é novidade para nenhum governo, mas somente uma fase aguda da doença crônica. A questão a ser respondida é: como desmontar essa monstruosidade que quer se perpetuar? A atual crise não acaba com as greves debeladas, ela somente é postergada para um futuro próximo, quando a sua eclosão pode ter contornos ainda mais dramáticos do que aqueles vistos no verão de 2012. Assim, um primeiro passo seria levar a sério as propostas feitas pelas organizações da sociedade civil sobre o tema e que estão presentes no Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3). Vamos listar algumas só para aquecer o debate e lembrar aos que querem esquecer esse tema inconveniente:
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